quinta-feira, 31 de janeiro de 2013
quarta-feira, 30 de janeiro de 2013
Machado de Assis TEORIA DO MEDALHÃO
TEORIA
DO MEDALHÃO
DIÁLOGO
– Estás com sono?
– Não, senhor.
– Nem eu; conversemos um pouco. Abre a
janela. Que horas são?
– Onze.
– Saiu o último conviva do nosso modesto jantar.
Com que, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no
dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem,
longos bigodes, alguns namoros...
– Papai...
– Não te ponhas com denguices, e falemos
como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes.
Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes
entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria,
no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti.
Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino.
Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um
anos. Mas, qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te
faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da
obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos,
os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as
esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar
as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir
por diante.
– Sim, senhor.
– Entretanto, assim como é de boa economia
guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar
um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem
suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia
da tua maioridade.
– Creia que lhe agradeço; mas que ofício,
não me dirá?
– Nenhum me parece mais útil e cabido que o
de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as
instruções de um pai. E acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral,
além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me
e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da
idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos
possas entrar francamente no regime do aprumo e do compasso. O sábio que disse:
“a gravidade é um mistério do corpo”, definiu a compostura do medalhão. Não
confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é um
puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do corpo, um
sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à idade de quarenta e cinco
anos...
– É verdade, por que quarenta e cinco
anos?
– Não é, como podes supor, um limite
arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do fenômeno. Geralmente, o
verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e
cinquenta anos, conquanto alguns exemplos se deem entre os cinquenta e cinco e
sessenta; mas estes são raros. Há-os também de quarenta anos, e outros mais
precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo
dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio.
– Entendo.
– Venhamos ao principal. Uma vez entrado
na carreira, deves por todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para
uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que
entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço.
Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da
plateia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as ideias;
pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa
habilidade é comum, nem tão constante esforço convidaria ao exercício da vida.
– Mas quem lhe diz que eu...
– Tu, meu filho, se me não engano, pareces
dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me
refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa
esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de
ideias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me
ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias
ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do
ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma
esperança. No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser
afligido de algumas ideias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As
ideias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos,
elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é
extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.
– Creio que assim seja; mas um tal
obstáculo é invencível.
– Não é; há um meio; é lançar mão de um
regime debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos, etc. O
voltarete, o dominó, e o whist são
remédios aprovados. O whist tem até a
rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada da
circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da ginástica, embora
elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem repousar,
restituem-lhe as forças e a atividade perdidas. O bilhar é excelente.
– Como assim, se também é um exercício
corporal?
– Não digo que não, mas há coisas em que a
observação desmente a teoria. Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é
porque as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos
habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas,
mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição de não andares
desacompanhado, porque a solidão é oficina de ideias, e o espírito deixado a si
mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.
– Mas se eu não tiver à mão um amigo apto
e disposto a ir comigo?
– Não faz mal; tens o valente recurso de
mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As
livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra razão que
me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande
conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas
às escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar
do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um
cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras interrogar diretamente os leitores
habituais das belas crônicas de Mazade; 75 por cento desses estimáveis
cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente
saudável. Com esse regime, durante oito, dez, dezoito meses – suponhamos dois
anos – reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à
disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está
subentendido no uso das ideias; há de ser naturalmente simples, tíbio,
apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim...
– Isto é o diabo! Não poder adornar o
estilo, de quando em quando...
– Podes; podes empregar umas quantas
figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça da Medusa, o tonel
das Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas
empregam sem desar, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos,
versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo
para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant, consules é um excelente fecho
de artigo político; o mesmo direi do Si
vis pacem para bellum. Alguns costumam renovar o sabor de uma citação
intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse
artifício; seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso,
porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções
convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória
individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a
um esforço inútil. Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto,
o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o
pensado. Quanto à utilidade de um tal sistema, basta figurar uma hipótese.
Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsite o mal. Eis aí uma
questão que pode aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a um inquérito
pedantesco, a uma coleta fastidiosa de documentos e observações, análise das
causas prováveis, causas certas, causas possíveis, um estudo infinito das
aptidões do sujeito reformado, da natureza do mal, da manipulação do remédio, das
circunstâncias da aplicação; matéria, enfim, para todo um andaime de palavras,
conceitos e desvarios. Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso aranzel,
tu dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes! – E esta frase
sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais
depressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol.
– Vejo por aí que vosmecê condena toda e
qualquer aplicação de processos modernos.
– Entendamo-nos. Condeno a aplicação,
louvo a denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia científica;
deves decorá-la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude
de deus Término, e as ciências sejam obra do movimento humano, como tens de ser
medalhão mais tarde, convém tomar as armas do seu tempo. E de duas uma: – ou
elas estarão usadas e divulgadas daqui a trinta anos, ou conservar-se-ão novas:
no primeiro caso, pertencem-te de foro próprio; no segundo, podes ter a
coquetice de as trazer, para mostrar que também és pintor. De outiva, com o
tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos responde toda essa
terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da
ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz
o perigo de inocular ideias novas, e é radicalmente falso. Acresce que no dia
em que viesses a assenhorear-te do espírito daquelas leis e fórmulas, serias
provavelmente levado a empregá-las com um tal ou qual conhecimento, como a
costureira – esperta e afreguesada – que, segundo um poeta clássico,
Quanto
mais pano tem, mais poupa o corte,
Menos
monte alardeia de retalhos;
e
este fenômeno, tratando-se de um medalhão, é que não seria científico.
– Upa! Que a profissão é difícil.
– E ainda não chegamos ao cabo.
– Vamos a ele.
– Não te falei ainda dos benefícios da
publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves
requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas,
que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que
D. Quixote solicite os favores dela mediante ações heroicas ou custosas é um
sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra
política. Longe de inventar um Tratado Científico da Criação dos Carneiros,
compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não
pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez,
vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. Comissões ou deputações para
felicitar um agraciado, um benemérito, um forasteiro, têm singulares
merecimentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam mitológicas,
cinegéticas ou coreográficas. Os sucessos de certa ordem, embora de pouca
monta, podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua pessoa.
Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro dano, além do susto, é útil mandá-lo
dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si, que é insignificante, mas pelo
efeito de recordar um nome caro às afeições gerais. Percebeste?
– Percebi.
– Essa é publicidade constante, barata,
fácil, de todos os dias; mas há outra. Qualquer que seja a teoria das artes, é
fora de dúvida que o sentimento da família, a amizade pessoal e a estima
pública instigam à reprodução das feições de um homem amado ou benemérito. Nada
obsta a que sejas objeto de uma tal distinção, principalmente se a sagacidade
dos amigos não achar em ti repugnância. Em semelhante caso, não só as regras da
mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto, como seria desazado
impedir que os amigos o expusessem em qualquer casa pública. Dessa maneira o
nome fica ligado à pessoa; os que houverem lido o teu recente discurso
(suponhamos) na sessão inaugural da União dos Cabeleireiros, reconhecerão na
compostura das feições o autor dessa obra grave, em que a “alavanca do
progresso” e “o suor do trabalho” vencem as “fauces hiantes” da miséria. No
caso de que uma comissão te leve à casa o retrato, deves agradecer-lhe o
obséquio com um discurso cheio de gratidão e um copo d’água: é uso antigo,
razoável e honesto. Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for
possível, uma ou duas pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de
glória ou regozijo, não vejo que possas, decentemente, recusar um lugar à mesa
aos reporters dos jornais. Em todo o
caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes
ajudá-los de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que
por um tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão
anexar ao teu nome os qualificativos dignos deles, incumbe a notícia a algum
amigo ou parente.
– Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não
é nada fácil.
– Nem eu te digo outra coisa. É difícil,
come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho e felizes os que chegam
a entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade.
Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó
ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa
nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo.
Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão
ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desadjetivados, e tu
serás o adjetivo dessas orações opacas, o odorífero
das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o principal, porque o
adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo
é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário.
– E parece-lhe que todo esse ofício é
apenas um sobressalente para os déficits
da vida?
– Decerto; não fica excluída nenhuma outra
atividade.
– Nem política?
– Nem política. Toda a questão é não
infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido,
liberal ou conservador, republicano ou ultra-montano, com a cláusula única de
não ligar nenhuma ideia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe somente a
utilidade do scibboleth bíblico.
– Se for ao parlamento, posso ocupar a
tribuna?
–
Podes e deves, é um modo de convocar a atenção pública. Quanto à matéria dos
discursos, tens à escolha: – ou os negócios miúdos, ou a metafísica política,
mas prefere a metafísica. Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem
daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes,
adota a metafísica; – é mais fácil e mais atraente. Supõe que desejas saber por
que motivo a 7ª Companhia de Infantaria foi transferida de Uruguaiana para
Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo Ministro da Guerra, que te explicará em
dez minutos as razões desse ato. Não assim a metafísica. Um discurso de
metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os
apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo
dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é
só prover os alforjes da memória. Em todo caso, não transcendas nunca os
limites de uma invejável vulgaridade.
– Farei o que puder. Nenhuma imaginação?
– Nenhuma; antes faze correr o boato de
que um tal dom é ínfimo.
– Nenhuma filosofia?
– Entendamo-nos: no papel e na língua
alguma, na realidade nada. “Filosofia da história”, por exemplo, é uma locução
que deves empregar com frequência, mas proíbo-te que chegues a outras
conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa
cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc.
– Também ao riso?
– Como ao riso?
– Ficar sério, muito sério...
– Conforme. Tens um gênio folgazão,
prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma
vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um grave pode ter seus momentos de
expansão alegre. Somente , – e este ponto é melindroso...
– Diga.
– Somente não deves empregar a ironia,
esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego
da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição
própria dos céticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa
chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete
pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e
arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?
– Meia-noite.
– Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois
anos, meu peralta; estás definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde.
Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta
noite vale o Príncipe de Machiavelli.
Vamos dormir.
MACHADO DE ASSIS
Apresentação do blog
“Candongas
não fazem festa”? Qué isso?
Mais um blog sobre literatura,
artes e cultura... outro? Outro. E mais outro do que um. Um blog, talvez, que
não reconheça bem a si mesmo, e que esteja empertigado, encanado com essa coisa
de ser igual a si. Bong, ploc? Ele desconfia disso, e por todo lado surgem-lhe
convites para que chute essa tralha para o alto. Haverá ele de chutar? Questão
do século...
Tronc. Candongas não fazem
festa chegou perplexo e assim ficará. Quem será? Não sabemos. Não somos do povo
do ponto final. Não começamos a partir da certeza (mas algo sabemos). Começamos
a partir da dúvida, da interrogação perplexa e desvairada. Não começamos de
algum lugar no centro, mas sim de um ponto qualquer na beirada, e juntando
fiapos queremos ver se aparecem figuras mais reconhecíveis, sobre as quais
possamos falar, falar, falar, ou mesmo silenciar, com nossas vozes de permeio.
Quem serei? Não sei: somos do povo da interrogação. Glot?
Mas Candongas não fazem festa
não é apenas desvario. Também tem, mas é só um pedaço. Nossa voz se dirige à
sensibilidade e ao debate (onde eles existam), nos propomos aqui a usar a
tecnologia da razão instrumental em favor da divulgação da arte e das
discussões críticas sobre as questões da arte, da cultura e da sociedade onde
elas subsistem – ou mínguam. Estamos atentos à lição do velho Tinianov, que
dizia que o sentido das obras de arte se relaciona muito de perto com o
contexto que as rodeia (a “série extra-literária”). E, no Brasil, haja contexto
que as rodeia. Assim, da mesma forma que nos propomos à discussão das obras,
sua organização e significado, também contemplaremos a entrada do mundo e de
suas coisas em nossos textos, pois criação da obra e construção da realidade
convivem solidárias, em trancos barulhentos.
Com tal ideia fixa serpenteando
em nossas mentes, elegemos Machado como nossa interrogação primeira, como nosso
primeiro totem. Imaginamo-lo andando pelas ruas daquele Rio de Janeiro do
século XIX, capital do Império (escravista)do Brasil, lúcido demais, desvairando
tresloucado ante as quiçá terríveis visões que divisa, em seu pensamento,
acerca dos porões da alma humana, e do que o pedaço de terra dito brasileiro
trouxe para decorar esses porões, que flutuam no ar. Para além da hipocrisia,
da alienação, da ignorância, dos discursos e falas vazios, da dissimulação do
ódio e do desejo de poder, da subserviência cínica, da arrogância e prepotência
estúpidas, a nós vem o interminável desfile, a que o mestre reage ajeitando o pince-nez.
A ele solicitamos o nosso nome,
declinado sobre anjos velozes do tempo vertiginoso, como uma esfinge de cuja
pergunta ninguém mais se lembra, embora ainda doa. Nome que vem em meio a
tantos outros no meio do batuque e do caos, dançando, chacoalhando, esfregando-se
e convulsionando-se, ao inventar a ilusão e a desilusão de si mesmo, prestes a
se despedaçarem mutuamente. Candongas não fazem festa não significa nada. Mas
populariza-se logo.
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