quarta-feira, 27 de março de 2013

Para situar a conversa


     Esta é a era da comunicação de massas. A arte e a cultura de nosso tempo resultam de um choque entre formas e práticas vindas de milênios através de tradições diversas e seu legado criativo, e a sua apropriação mercenária pela indústria cultural, que busca vampirizá-las, desmontando-as e remontando-as, simplificadas, em produtos culturais de confecção barata, prontos para serem consumidos por massas consumistas, alienadas e conformistas, gerando o tal dinheiro para a indústria cultural e legando ao esquecimento (não é exagero) tantos artistas autênticos, que contribuem efetivamente para transmitir aquelas formas práticas da tradição e trabalhá-las criativamente, atividade cujo valor maior está em outro lugar, num plano diferente do dinheiro.
     Para fazer isso, essa indústria conta com um grande contingente de paus mandados que se dispõem a simular a experiência da arte, tomando o cuidado de afastar o que fazem de qualquer reflexão ou atitude crítica (Janjões modernos), em troca de mais ou menos... dinheiro. Somado aos paus mandados, que formam o estofo humano da equação, um portentoso aparato tecnológico, que custa um bom dinheiro, é o veículo material da indústria cultural. Ele é composto por um imenso conjunto de diferentes máquinas produzidas industrialmente e interconectadas. Essa estrutura tecnológica, filha da ciência com o capital, está organizada num sistema batizado de “mídia” pelos gringos, e se nos apresenta com um valor embaraçosamente ambíguo: tanto abre espaço para a liberdade de pensamento que se exercita nesta página da internete como se presta tão frequentemente a servir de instrumento de dominação, hipnotizando as massas humanas sobre as quais incide, com o intuito de manipulá-las ao bel prazer.
     Neste choque, até meio cósmico para nós, a parte que fica mais destruída é a das tradições diversas. Demonstrando na prática as proposições dos filósofos franceses Deleuze e Guatarri, o universo cultural do capitalismo, encarnado na indústria cultural, se apropria das formas, dos códigos culturais e dos valores dos sistemas culturais pré-capitalistas, mais singulares e restritos, e os submete à lógica abstrata dos valores do capital, que se impõe como sistema geral e hegemônico por onde quer que grasse o modo capitalista de viver.  Os europeus viveram esse processo há tempos, na condição de criadores da modernidade e um de seus principais centros. A situação do Brasil, cujo processo de modernização se intensificou a partir de meados do século XX, portanto muito recentemente, pode ser caracterizada a partir da proposta desses franceses, num momento – as duas últimas décadas – em que a continuidade do significado dessas tradições na sociedade parece estar posto em cheque. Pois não são simplesmente as formas da tradição que estão cerceadas pelos interesses da indústria cultural capitalista, mas a visão de mundo da sociedade se transforma em função da hegemonia do capitalismo.
     Particularmente, para quem vive no interior, como nós, contemplamos ao longo dessas duas décadas mudanças profundas na paisagem do mundo e da vida ao nosso redor. Em alguns aspectos devido às mudanças contínuas (chamadas de “neoliberalismo”) que convulsionam o planeta desde os anos 80 e a queda do Muro de Berlim, e em outros devido à prosperidade do agronegócio selvagem em nossa região, que tomou conta da terra disponível no campo, expulsando quase toda a sua população para as cidades, alimentando com esse êxodo os problemas urbanos já existentes e criando outros, e ocupando a área rural com monocultura de cana, soja ou gado. A paisagem que rodeou a infância de muitos era outra, e tudo se integrou de tal forma aos “avanços” do capitalismo que a própria infância já não é a mesma.
     Falar de moderno, de modernidade, mais do que apenas de coisas novas ou atuais, é falar num período histórico, período que é o da própria formação do país. A modernidade tem seu início no chamado Renascimento europeu, nos séculos XV e XVI, mas vai se consolidando aos poucos até a virada do século XVIII para o XIX, quando se instala na Europa Ocidental e na América do Norte, ao ganhar forma com a Revolução Industrial na Inglaterra, a revolução política na França, a independência dos Estados Unidos e logo depois das colônias da América Latina, inclusive a do Brasil, e, na arte, com o aparecimento da arte romântica. Da Europa e Estados Unidos se espalha pelo mundo nos 200 anos seguintes, chegando aos rincões mais remotos do planeta e até ao espaço sideral, a julgar pela nuvem de lixo espacial em órbita da Terra.
     A época moderna é que rompeu com as sociedades tradicionais e seu modo de ver a vida, criando a sociedade civil, a separação entre igreja e Estado, o iluminismo, o capitalismo selvagem, o progresso científico, a arte como expressão da individualidade, o socialismo, os motores à explosão, a opinião pública, a internete, a bomba atômica, a liberação dos costumes, os aeroportos, as xacretes e os fascistinhas de plantão. Ela tem a sua importância na conquista de uma vida mais digna e livre pelas pessoas, e também na criação dos maiores esquemas de exploração do outro e de repressão de todos já vistos na história. Essa existência contraditória está na essência da modernidade, assim como também (por outros motivos) ocorre em outras épocas históricas. Por isso, não podemos “avaliar” a modernidade como algo de que “gostamos ou não gostamos”: estamos falando de um mundo inteiro, em cujo bojo habitamos, e compartilhamos o seu destino com todos.
     O Brasil, fazendo parte do entorno periférico do capitalismo e da modernidade (aos poucos subindo de posto, right?), foi, desde a sua autonomia em 1822, adotando lentamente os preceitos modernos, obra da classe rica local, tida como integração do país na civilização mundial. Segundo boa análise dos marxistas, o Brasil foi entrando no moderno segundo o esquema da “modernização conservadora”: cada caractere moderno que entra na sociedade brasileira tem uma contrapartida em compromissos com valores políticos e ideológicos dos ricos conservadores, que assim terminam por confrontar a modernização, limitando-a significativamente, neutralizando efeitos considerados nocivos (como as pessoas desfrutando de seus direitos) da modernidade, e então essa classe conservadora pode manter sua influência, seu prestígio e seus valores, cercando-se da aparência de uma modernização civilizada, que na verdade é dissimulação de um processo que atende a interesses variados dessa mesma classe social, configurando nossa versão nacional do capitalismo selvagem.
     O advento do moderno no Brasil carrega uma contradição histórica: a vida moderna abre um espaço para as pessoas terem direitos, serem mais livres, livrando-se um pouco das limitações impostas pelos poderes oligárquicos locais e tradicionais. Mas, escaneado e pressionado pelo esquema da modernização conservadora, o processo de modernização brasileira reenquadra a sociedade nos imperativos interesses daquelas classes abastadas, e faz isso de várias formas. Em muitos casos, e cada vez mais na atualidade, a instauração do moderno ganha um valor ideológico: representa a reafirmação e legitimação conscientes da cultura burguesa (consumista, individualista e alienante) sobre as culturas populares, representantes da identidade cultural do país. Trata-se de uma tentativa de apropriação do universo cultural. Por outro lado, manifestações culturais críticas, como algumas vanguardas e a boa arte de protesto, ao tomarem seriamente um moderno sem concessões a estéticas de mercado, desafiam frontalmente os critérios consagrados de gosto, pagando o preço de permanecerem isoladas num limbo, acusadas de hermetismo ou de serem expressão de minorias pouco influentes.
     Sabemos que a arte, como atividade humana, é muito mais antiga do que tudo isso. Praticada desde a pré-história, foi uma das primeiras coisas que o ser humano fez com a sua linguagem. Se tornou atividade importante em todas ou quase todas as sociedades humanas. Deriva dessa antiguidade ancestral a universalidade do “apelo” artístico; do direito e mesmo do prazer de qualquer pessoa de apreciá-la ou criá-la. Mas, apesar dessa universalidade e em contradição com ela, a arte é criada e apreciada em sociedades humanas concretas, dominadas por problemas reais. Desse modo, a arte produzida nas sociedades modernas e em modernização (conduzidas pelos interesses hegemônicos do capital) adquiriu gradativamente formas mais adaptadas aos valores construídos pela modernidade capitalista, processo que levou à expressão mais acabada dessa modernidade, que é a indústria cultural, cujo desenvolvimento desembocou paradoxalmente na paralisação da arte e na sua transformação em mera fachada de efeitos: a obra entendida como “mercadoria cultural”, deserta de valores estéticos reais.
     Não pretendemos negar aqui o “potencial transformador da indústria cultural”, tão cantado em verso e prosa, defendido por pensadores importantes como McLuhan, Pierre Lévy, Teixeira Coelho e Umberto Eco, por movimentos artísticos como o Tropicalismo, que proclamava ter entrado em todas as estruturas, e pelas lojas de produtos eletrônicos. Reconhecemos que houve mais de um momento em que foi possível que obras de arte encontrassem espaço na indústria cultural, particularmente nos estágios mais antigos de seu desenvolvimento; essa busca de espaço se faz sentir também quando surge a internete como mídia mais democrática do que os tradicionais rádio, cinema ou tevê. Não temos a pretensão de sermos apocalípticos em relação à comunicação de massas, ainda mais num país em que ela tem uma configuração especialmente envolvente. Nós a estamos usando agora.
     Mas a verdade é que vemos claramente, nas últimas décadas, os vários setores das artes serem sistematicamente ignorados e boicotados pelas empresas que compõem a “grande mídia” da indústria cultural nacional: artistas autênticos, que desenvolvem trabalhos sérios de elaboração estética, atuam em esferas diferentes da esfera da mídia. A ideia, já sustentada por muitos, de que o artista da sociedade capitalista “se libertou” de sua antiga tutela à corte do rei, ao sabor do mecenato, porque se transformou em profissional remunerado pelo mercado, revela-se, no Brasil de hoje, uma farsa: o escritor não acha editora, o cineasta não consegue financiamento (a menos que seja vinculado a certa emissora de tevê), o artista de teatro não tem onde encenar, o artista plástico não tem nem ateliê; mesmo a “captação de recursos” das leis de incentivo à cultura está no colo da publicidade e da “fama midiática”. As exceções são poucas e honrosas, mas os verdadeiros artistas brasileiros são constrangidos ideologicamente, todos os dias, por um conceito de obra de arte como mercadoria de entretenimento que não foi criado por eles, mas por pessoas – os empresários e produtores da indústria cultural – que pouco ou nada têm a ver com a arte, com a cultura e com as pessoas que de fato as promovem. Fechar os olhos a isso é negar-se a enxergar a realidade que está diante de quem queira olhar.
     Candongas não fazem festa surgiu para alardear a arte em meio a esse contexto hostil a ela. Nossa reflexão, surgida na transição do século XX para o XXI, chega no momento em que três fatores diferentes coincidem de modo muito interessante. Em primeiro, a crise da arte baseada nos paradigmas estéticos da modernidade, sem solução até o momento. Em segundo, o questionamento dos aspectos destrutivos e agressivos da modernidade, desde o movimento ecológico até o Fórum Social Mundial, o que leva a um inédito questionamento dos próprios valores e princípios modernos, e a inspirar uma reivindicação dos aspectos positivos da modernidade, sem a companhia dos aspectos negativos, em busca de um outro mundo possível. E, enfim, o final da ditadura militar no Brasil e a tentativa da sociedade brasileira de construir um regime político mais democrático no país, o que implica inclusive (embora isso não esteja claro para muitos) na democratização efetiva e regulação legal dos meios de comunicação, monopolizados por meia dúzia de empresas privadas da burguesia nacional, cuja preocupação central é apenas monetária e político-ideológica. Essa burguesia persiste, como forma de legitimar seu poder político e econômico, em uma missão incansável de acumular dinheiro e de tentar forjar com ele uma história coletiva (farsesca) nos moldes de seu próprio olhar sobre o mundo, deixando de fora as visões de mundo e da arte que não ecoem essa olhar, e alienando as massas até que elas engulam sozinhas esse olhar burguês, tomando-o como seu.
     A convergência desses três fatores cria um contexto que nos parece favorável e propício a um debate amplo sobre a sociedade e seus valores culturais, debate que nós, em nossa dimensão modesta frente às grandes empresas que buscam controlar os meios de comunicação para si, temos a pretensão de levar adiante. Que sociedade estamos construindo para todos nós? Que cultura temos e precisamos, na época de maior abundância de informação na história, a partir de nossas concepções de como usar e desfrutar dessa informação em nosso próprio benefício, para criar uma sociedade mais justa e sábia? E o que a arte pode nos dizer sobre isso? Pode ela, em suas manifestações mais criativas e diversas, inundar a realidade, mesmo que provisoriamente, com uma faísca de intuição? Nosso intuito é contribuir para pensar e para sentir esse universo cultural e artístico em que nos miramos.
     Mas não somos apologistas da arte engajada. A arte não tem obrigação nenhuma de abordar tematicamente esses problemas. O artista é livre para dizer o que quiser. Somos contra o direcionamento prévio do trabalho de criação artística, a não ser o que o próprio artista resolva se impor. Nos interessa aqui divulgar e falar da mesma forma sobre obras que busquem se vincular a uma discussão explícita de coisas da realidade, como sobre obras que estejam absolutamente desinteressadas desse tipo de discussão. A questão é que, independentemente do tema abordado, a arte, por sua natureza e papel que tem para o ser humano, já coloca a visão de mundo do nosso tempo, pois ela mexe com os múltiplos pontos de vista que se cruzam em nosso olhar individual e coletivo sobre esse mundo. Por isso ela é um terreno especial para se sentir e pensar a vida em seus diversos aspectos; a experiência da arte nos convida a rever as concepções que temos do mundo onde vivemos e de nós mesmos, e nesse rever, a encontrar prazer.
     Que a arte possa prosseguir e perdurar em seu caminho de continuar a tradição e de reelaborá-la criativamente. Que ela possa driblar as fundações pesadas da indústria cultural, e planando pelas brechas do sistema ela retome o que lhe é de direito na vida da sociedade. Que o trabalho do artista nos divirta e também nos faça pensar, nos faça sentir, e seja uma contribuição efetiva para que tenhamos uma mente mais aberta, um espírito mais leve e uma inteligência mais atenta. Que o significado mais profundo da obra de arte fecunde nossa sensibilidade e abra nossos olhos para o presente e também para o futuro. E que a beleza nos eleve, não no sentido ilusório de uma depuração moral, mas com a felicidade de estar na existência por inteiro. Estamos aí, de boca no mundaréu, para ver que massa isso dá.

Candongas não fazem festa

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