Esta é a era da comunicação de massas. A
arte e a cultura de nosso tempo resultam de um choque entre formas e práticas
vindas de milênios através de tradições diversas e seu legado criativo, e a sua
apropriação mercenária pela indústria cultural, que busca vampirizá-las,
desmontando-as e remontando-as, simplificadas, em produtos culturais de
confecção barata, prontos para serem consumidos por massas consumistas,
alienadas e conformistas, gerando o tal dinheiro para a indústria cultural e
legando ao esquecimento (não é exagero) tantos artistas autênticos, que
contribuem efetivamente para transmitir aquelas formas práticas da tradição e
trabalhá-las criativamente, atividade cujo valor maior está em outro lugar, num
plano diferente do dinheiro.
Para fazer isso, essa indústria conta com
um grande contingente de paus mandados que se dispõem a simular a experiência
da arte, tomando o cuidado de afastar o que fazem de qualquer reflexão ou
atitude crítica (Janjões modernos), em troca de mais ou menos... dinheiro.
Somado aos paus mandados, que formam o estofo humano da equação, um portentoso
aparato tecnológico, que custa um bom dinheiro, é o veículo material da
indústria cultural. Ele é composto por um imenso conjunto de diferentes
máquinas produzidas industrialmente e interconectadas. Essa estrutura
tecnológica, filha da ciência com o capital, está organizada num sistema
batizado de “mídia” pelos gringos, e se nos apresenta com um valor
embaraçosamente ambíguo: tanto abre espaço para a liberdade de pensamento que
se exercita nesta página da internete como se presta tão frequentemente a
servir de instrumento de dominação, hipnotizando as massas humanas sobre as
quais incide, com o intuito de manipulá-las ao bel prazer.
Neste choque, até meio cósmico para nós, a
parte que fica mais destruída é a das tradições diversas. Demonstrando na
prática as proposições dos filósofos franceses Deleuze e Guatarri, o universo
cultural do capitalismo, encarnado na indústria cultural, se apropria das
formas, dos códigos culturais e dos valores dos sistemas culturais
pré-capitalistas, mais singulares e restritos, e os submete à lógica abstrata
dos valores do capital, que se impõe como sistema geral e hegemônico por onde
quer que grasse o modo capitalista de viver. Os europeus viveram esse processo há tempos,
na condição de criadores da modernidade e um de seus principais centros. A
situação do Brasil, cujo processo de modernização se intensificou a partir de
meados do século XX, portanto muito recentemente, pode ser caracterizada a
partir da proposta desses franceses, num momento – as duas últimas décadas – em
que a continuidade do significado dessas tradições na sociedade parece estar
posto em cheque. Pois não são simplesmente as formas da tradição que estão
cerceadas pelos interesses da indústria cultural capitalista, mas a visão de
mundo da sociedade se transforma em função da hegemonia do capitalismo.
Particularmente, para quem vive no
interior, como nós, contemplamos ao longo dessas duas décadas mudanças
profundas na paisagem do mundo e da vida ao nosso redor. Em alguns aspectos
devido às mudanças contínuas (chamadas de “neoliberalismo”) que convulsionam o
planeta desde os anos 80 e a queda do Muro de Berlim, e em outros devido à
prosperidade do agronegócio selvagem em nossa região, que tomou conta da terra
disponível no campo, expulsando quase toda a sua população para as cidades,
alimentando com esse êxodo os problemas urbanos já existentes e criando outros,
e ocupando a área rural com monocultura de cana, soja ou gado. A paisagem que
rodeou a infância de muitos era outra, e tudo se integrou de tal forma aos
“avanços” do capitalismo que a própria infância já não é a mesma.
Falar de moderno, de modernidade, mais do
que apenas de coisas novas ou atuais, é falar num período histórico, período que
é o da própria formação do país. A modernidade tem seu início no chamado
Renascimento europeu, nos séculos XV e XVI, mas vai se consolidando aos poucos
até a virada do século XVIII para o XIX, quando se instala na Europa Ocidental
e na América do Norte, ao ganhar forma com a Revolução Industrial na
Inglaterra, a revolução política na França, a independência dos Estados Unidos
e logo depois das colônias da América Latina, inclusive a do Brasil, e, na
arte, com o aparecimento da arte romântica. Da Europa e Estados Unidos se
espalha pelo mundo nos 200 anos seguintes, chegando aos rincões mais remotos do
planeta e até ao espaço sideral, a julgar pela nuvem de lixo espacial em órbita
da Terra.
A época moderna é que rompeu com as
sociedades tradicionais e seu modo de ver a vida, criando a sociedade civil, a
separação entre igreja e Estado, o iluminismo, o capitalismo selvagem, o
progresso científico, a arte como expressão da individualidade, o socialismo,
os motores à explosão, a opinião pública, a internete, a bomba atômica, a
liberação dos costumes, os aeroportos, as xacretes e os fascistinhas de
plantão. Ela tem a sua importância na conquista de uma vida mais digna e livre
pelas pessoas, e também na criação dos maiores esquemas de exploração do outro e
de repressão de todos já vistos na história. Essa existência contraditória está
na essência da modernidade, assim como também (por outros motivos) ocorre em
outras épocas históricas. Por isso, não podemos “avaliar” a modernidade como
algo de que “gostamos ou não gostamos”: estamos falando de um mundo inteiro, em
cujo bojo habitamos, e compartilhamos o seu destino com todos.
O Brasil, fazendo parte do entorno
periférico do capitalismo e da modernidade (aos poucos subindo de posto,
right?), foi, desde a sua autonomia em 1822, adotando lentamente os preceitos
modernos, obra da classe rica local, tida como integração do país na
civilização mundial. Segundo boa análise dos marxistas, o Brasil foi entrando
no moderno segundo o esquema da “modernização conservadora”: cada caractere
moderno que entra na sociedade brasileira tem uma contrapartida em compromissos
com valores políticos e ideológicos dos ricos conservadores, que assim terminam
por confrontar a modernização, limitando-a significativamente, neutralizando
efeitos considerados nocivos (como as pessoas desfrutando de seus direitos) da
modernidade, e então essa classe conservadora pode manter sua influência, seu
prestígio e seus valores, cercando-se da aparência de uma modernização
civilizada, que na verdade é dissimulação de um processo que atende a
interesses variados dessa mesma classe social, configurando nossa versão
nacional do capitalismo selvagem.
O advento do moderno no Brasil carrega uma
contradição histórica: a vida moderna abre um espaço para as pessoas terem
direitos, serem mais livres, livrando-se um pouco das limitações impostas pelos
poderes oligárquicos locais e tradicionais. Mas, escaneado e pressionado pelo
esquema da modernização conservadora, o processo de modernização brasileira
reenquadra a sociedade nos imperativos interesses daquelas classes abastadas, e
faz isso de várias formas. Em muitos casos, e cada vez mais na atualidade, a instauração
do moderno ganha um valor ideológico: representa a reafirmação e legitimação
conscientes da cultura burguesa (consumista, individualista e alienante) sobre
as culturas populares, representantes da identidade cultural do país. Trata-se de
uma tentativa de apropriação do universo cultural. Por outro lado, manifestações
culturais críticas, como algumas vanguardas e a boa arte de protesto, ao
tomarem seriamente um moderno sem concessões a estéticas de mercado, desafiam frontalmente
os critérios consagrados de gosto, pagando o preço de permanecerem isoladas num
limbo, acusadas de hermetismo ou de serem expressão de minorias pouco
influentes.
Sabemos que a arte, como atividade humana,
é muito mais antiga do que tudo isso. Praticada desde a pré-história, foi uma
das primeiras coisas que o ser humano fez com a sua linguagem. Se tornou
atividade importante em todas ou quase todas as sociedades humanas. Deriva
dessa antiguidade ancestral a universalidade do “apelo” artístico; do direito e
mesmo do prazer de qualquer pessoa de apreciá-la ou criá-la. Mas, apesar dessa
universalidade e em contradição com ela, a arte é criada e apreciada em
sociedades humanas concretas, dominadas por problemas reais. Desse modo, a arte
produzida nas sociedades modernas e em modernização (conduzidas pelos
interesses hegemônicos do capital) adquiriu gradativamente formas mais
adaptadas aos valores construídos pela modernidade capitalista, processo que
levou à expressão mais acabada dessa modernidade, que é a indústria cultural,
cujo desenvolvimento desembocou paradoxalmente na paralisação da arte e na sua
transformação em mera fachada de efeitos: a obra entendida como “mercadoria
cultural”, deserta de valores estéticos reais.
Não pretendemos negar aqui o “potencial
transformador da indústria cultural”, tão cantado em verso e prosa, defendido
por pensadores importantes como McLuhan, Pierre Lévy, Teixeira Coelho e Umberto
Eco, por movimentos artísticos como o Tropicalismo, que proclamava ter entrado
em todas as estruturas, e pelas lojas de produtos eletrônicos. Reconhecemos que
houve mais de um momento em que foi possível que obras de arte encontrassem
espaço na indústria cultural, particularmente nos estágios mais antigos de seu
desenvolvimento; essa busca de espaço se faz sentir também quando surge a
internete como mídia mais democrática do que os tradicionais rádio, cinema ou
tevê. Não temos a pretensão de sermos apocalípticos em relação à comunicação de
massas, ainda mais num país em que ela tem uma configuração especialmente
envolvente. Nós a estamos usando agora.
Mas a verdade é que vemos claramente, nas
últimas décadas, os vários setores das artes serem sistematicamente ignorados e
boicotados pelas empresas que compõem a “grande mídia” da indústria cultural
nacional: artistas autênticos, que desenvolvem trabalhos sérios de elaboração
estética, atuam em esferas diferentes da esfera da mídia. A ideia, já
sustentada por muitos, de que o artista da sociedade capitalista “se libertou”
de sua antiga tutela à corte do rei, ao sabor do mecenato, porque se
transformou em profissional remunerado pelo mercado, revela-se, no Brasil de
hoje, uma farsa: o escritor não acha editora, o cineasta não consegue
financiamento (a menos que seja vinculado a certa emissora de tevê), o artista
de teatro não tem onde encenar, o artista plástico não tem nem ateliê; mesmo a “captação
de recursos” das leis de incentivo à cultura está no colo da publicidade e da “fama
midiática”. As exceções são poucas e honrosas, mas os verdadeiros artistas
brasileiros são constrangidos ideologicamente, todos os dias, por um conceito
de obra de arte como mercadoria de entretenimento que não foi criado por eles,
mas por pessoas – os empresários e produtores da indústria cultural – que pouco
ou nada têm a ver com a arte, com a cultura e com as pessoas que de fato as
promovem. Fechar os olhos a isso é negar-se a enxergar a realidade que está
diante de quem queira olhar.
Candongas
não fazem festa surgiu para alardear a arte em meio a esse contexto hostil
a ela. Nossa reflexão, surgida na transição do século XX para o XXI, chega no
momento em que três fatores diferentes coincidem de modo muito interessante. Em
primeiro, a crise da arte baseada nos paradigmas estéticos da modernidade, sem
solução até o momento. Em segundo, o questionamento dos aspectos destrutivos e
agressivos da modernidade, desde o movimento ecológico até o Fórum Social
Mundial, o que leva a um inédito questionamento dos próprios valores e
princípios modernos, e a inspirar uma reivindicação dos aspectos positivos da
modernidade, sem a companhia dos aspectos negativos, em busca de um outro mundo
possível. E, enfim, o final da ditadura militar no Brasil e a tentativa da
sociedade brasileira de construir um regime político mais democrático no país,
o que implica inclusive (embora isso não esteja claro para muitos) na
democratização efetiva e regulação legal dos meios de comunicação,
monopolizados por meia dúzia de empresas privadas da burguesia nacional, cuja
preocupação central é apenas monetária e político-ideológica. Essa burguesia
persiste, como forma de legitimar seu poder político e econômico, em uma missão
incansável de acumular dinheiro e de tentar forjar com ele uma história
coletiva (farsesca) nos moldes de seu próprio olhar sobre o mundo, deixando de
fora as visões de mundo e da arte que não ecoem essa olhar, e alienando as massas
até que elas engulam sozinhas esse olhar burguês, tomando-o como seu.
A convergência desses três fatores cria um
contexto que nos parece favorável e propício a um debate amplo sobre a
sociedade e seus valores culturais, debate que nós, em nossa dimensão modesta
frente às grandes empresas que buscam controlar os meios de comunicação para
si, temos a pretensão de levar adiante. Que sociedade estamos construindo para
todos nós? Que cultura temos e precisamos, na época de maior abundância de
informação na história, a partir de nossas concepções de como usar e desfrutar
dessa informação em nosso próprio benefício, para criar uma sociedade mais
justa e sábia? E o que a arte pode nos dizer sobre isso? Pode ela, em suas
manifestações mais criativas e diversas, inundar a realidade, mesmo que
provisoriamente, com uma faísca de intuição? Nosso intuito é contribuir para pensar
e para sentir esse universo cultural e artístico em que nos miramos.
Mas não somos apologistas da arte
engajada. A arte não tem obrigação nenhuma de abordar tematicamente esses
problemas. O artista é livre para dizer o que quiser. Somos contra o
direcionamento prévio do trabalho de criação artística, a não ser o que o
próprio artista resolva se impor. Nos interessa aqui divulgar e falar da mesma
forma sobre obras que busquem se vincular a uma discussão explícita de coisas
da realidade, como sobre obras que estejam absolutamente desinteressadas desse
tipo de discussão. A questão é que, independentemente do tema abordado, a arte,
por sua natureza e papel que tem para o ser humano, já coloca a visão de mundo
do nosso tempo, pois ela mexe com os múltiplos pontos de vista que se cruzam em
nosso olhar individual e coletivo sobre esse mundo. Por isso ela é um terreno
especial para se sentir e pensar a vida em seus diversos aspectos; a
experiência da arte nos convida a rever as concepções que temos do mundo onde
vivemos e de nós mesmos, e nesse rever, a encontrar prazer.
Que a arte possa prosseguir e perdurar em
seu caminho de continuar a tradição e de reelaborá-la criativamente. Que ela
possa driblar as fundações pesadas da indústria cultural, e planando pelas
brechas do sistema ela retome o que lhe é de direito na vida da sociedade. Que
o trabalho do artista nos divirta e também nos faça pensar, nos faça sentir, e
seja uma contribuição efetiva para que tenhamos uma mente mais aberta, um
espírito mais leve e uma inteligência mais atenta. Que o significado mais
profundo da obra de arte fecunde nossa sensibilidade e abra nossos olhos para o
presente e também para o futuro. E que a beleza nos eleve, não no sentido
ilusório de uma depuração moral, mas com a felicidade de estar na existência
por inteiro. Estamos aí, de boca no mundaréu, para ver que massa isso dá.
Candongas não fazem festa
Nenhum comentário:
Postar um comentário