domingo, 23 de março de 2014

O HINO DO FUTURO É PARADISÍACO Roberto Piva


O HINO DO FUTURO É PARADISÍACO


Este poema é dedicado aos presos políticos do Brasil-
Contra a tortura, pelas liberdades democráticas

                                                                                           “un cor feroce.
                                                                                            una virtute armata...”
                                                                                                          Machiavelli



I

Todas estas embalagens mortas
todas estas estatísticas tolas
todos estes desabamentos dos miolos da Terra
todas estas moscas vaporizadas nos olhos dos dementes
todas estas hérnias jogadas no lixo
todas as autópsias surrupiadas no escuro
todas as mãos decepadas eletrocutadas esmagadas
todas as bocas urrando sob o mesmo focinho incerto
toda a voracidade da TV & suas sucuris metálicas da desolação
todos estes brinquedos tristes carregados de bala de goma
todos os enforcados de cabeça para baixo
toda esta merda de marchas cívicas
todo o soluço do país soluço mais fundo que o coração rubro da aurora
todas as academias & seus poetas empalhados
todas as pupilas do crime
todos os gorilas da guerra-fria & sua pop music
todos os garotos de 15 anos com cérebros de catarro esperando a sepultura
todos os hippies de butique brincando de profetas enquanto costuram os olhos do estudante
há uma porta trancada na cara do país
há um anúncio classificado que escapou da Idade Média
há uma paisagem dilacerada escamoteada em símbolos mais castrados que um cantor de rock


II

Neste momento uma ave desova o poente no calor de novembro entre duas rochas onde a primeira é toda de cactus selvagens relutando como um segredo relutando como o degredo da tua mais simples ilusão os ovos rolam nas trevas onde rondam tigres para passar o tempo o tempo o tempo o tempo


III

Crianças deste mundo
Mares deste mundo
Flores deste mundo
homens, mulheres corações da noite
no fundo do olho do furacão
na ponta da faca do espaço
na franja vermelha das cidades
tua febre é o último adeus à resignação à moléstia cardíaca do tédio
tua febre é a saída apertada entre dois goles de vida


IV

para aqueles que vomitaram sangue
para aqueles que ofertaram o último suspiro
para aqueles que o raio X é o espectro de um  crocodilo acendendo um cigarro
para aqueles sozinhos
para aqueles que se calam diante dos regulamentos
para aqueles cujas almas se transformaram em geléias de pura transcendência
para aqueles que não têm a Bahia como válvula de escape curtição do grande embalo refrigerado tudo bem bicho legal tamos aí
para aqueles para os quais tudo é ilegal & que vivem como bichos contra a vontade & fedem nas prisões estando aí à disposição da bússola dolicocéfala da repressão
para aqueles que são procurados infernizados enquanto tudo bem tudo bem canta a televisão na sua primavera animal
para aqueles cujos estômagos viraram papa & seus cérebros cartuchos de dinamite
para aqueles que não têm mais filhos
para aqueles que perderam seus amores no último trem blindado do Esquadrão da Morte
para aqueles que acordam sempre no mesmo lugar na mesma manhã no mesmo arco-íris quebrado.




ROBERTO PIVA



quinta-feira, 13 de março de 2014

Albrecht DÜRER Os cavaleiros do Apocalipse (1498)


Sobre esta xilogravura de Dürer, do auge da Renascença, Michel Foucault comenta, na sua História da Loucura: "(...) em Dürer, os cavaleiros do Apocalipse, exatamente aqueles que foram enviados por Deus: não são os anjos do Triunfo e da reconciliação, não são os arautos da justiça serena, mas sim os guerreiros desenfreados da louca vingança. O mundo mergulha no Furor universal. A vitória não cabe a Deus, nem ao Diabo, mas à Loucura." (FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 1987, p.22)



sábado, 1 de março de 2014

GREGÓRIO DE MATOS Descreve a confusão do festejo do Entrudo


SONÊTO

Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas,
Galinhas, porco, vaca, e mais carneiro,
Os perus em poder do Pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas.

Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas,
Gastar para comer muito dinheiro,
Não ter mãos a medir o Taverneiro,
Com réstias de cebolas dar pancadas.

Das janelas com tanhos dar nas gentes,
A buzina tanger, quebrar panelas,
Querer em um só dia comer tudo.

Não perdoar arroz, nem cuscuz quente,
Despejar pratos, e alimpar tigelas,
Estas as festas são do Santo Entrudo.


Gregório de Matos


Observações sobre o vocabulário do poema:

Filhó: biscoito ou bolinho feito de farinha e ovos, frito, e, em seguida, passado em mistura de açúcar e canela ou molhado em calda aromatizada de mel.
Fatia: rabanada.
Sonho: doce feito com massa cozida de farinha de trigo, ovos, leite, frito em gordura e geralmente polvilhado com açúcar e canela.
Mal-assada: Fritada (espécie de omelete).
Pulha: brincadeira maliciosa e de mau gosto que consiste em ato de zoar uma pessoa, levando-a a fazer perguntas cuja resposta reverte em escárnio dela mesma (tipo “Quem é? É o Mário. Que Mário? Aquele que te pegou atrás do armário.” e por aí afora). “Deitar pulhas” aparece com o sentido de fazer, aplicar pulhas.
Tanho: assento de tábua.

Entrudo: festejos realizados no Brasil colonial e imperial, que se transformaram no atual carnaval. O Entrudo de que nos fala Gregório de Matos ocorreu em Salvador (ou “Cidade da Bahia”, como se dizia na época), por volta de 1690.


Machado de Assis CÍRCULO VICIOSO


Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
– “Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
                      
– “Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

– “Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

– “Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?”




Machado de Assis (em Ocidentais, 1901)