sábado, 30 de novembro de 2013
quinta-feira, 31 de outubro de 2013
domingo, 22 de setembro de 2013
segunda-feira, 26 de agosto de 2013
sábado, 6 de julho de 2013
Mário Cesariny de Vasconcelos O NAVIO DE ESPELHOS
O NAVIO DE ESPELHOS
(Mário Cesariny)
O navio de espelhos
não navega, cavalga
Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível
Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos
(Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele)
Os armadores não amam
a sua rota clara
(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)
Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga
(O seu porão traz nada
nada leva à partida)
Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta
(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)
Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto
(A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto)
Quando um se revolta
há dez mil insurrectos
(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)
E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo
Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)
Do princípio do mundo
até o fim do mundo
[de “A cidade queimada”, 1965]
terça-feira, 2 de julho de 2013
domingo, 30 de junho de 2013
Plínio Marcos FUTEBOL É PRA MACHO
Futebol é pra macho
Certa vez, o União
da Barra do Catimbó recebeu o seguinte ofício:
“Ilmo. Sr.
Diretores do União da Barra do Catimbó
Nós
vem por essa mal traçada linha chamar vocês aí pra jogar no campo da gente uma
partida de futebol no domingo, que a gente só joga nesse dia, que nos outro a
gente trabalha. Se vocês quiser vim, pode responder o ofício dizendo que vem,
que é pra gente pendurar ele na tabuleta do boteco do Almeida pros sócio do
time da gente poder ver que vocês aceitou e se na hora vocês ficar com medo e
não vier eles não ficam pegando no pé da gente e dizendo que essa diretoria não
tem ninguém que sabe tratar jogo. Agora, se vocês não tão a fim de encarar a
gente, então é problema de vocês. O Flor do Ó não tem medo de ninguém”. (Ass.:
Olavo Silva – Diretor Esportivo do Flor do Ó)
Assim que leu o ofício, o Seu Azulão,
presidente do União, se picou de raiva. Convocou a diretoria do seu time, leu o
ofício do adversário e de imediato todos toparam o jogo com o Flor do Ó. E como
era solicitado pelo desafiante, mandaram a resposta num ofício caprichado:
“Ilmo. Sr.
Diretores do Flor do Ó
Nós
recebeu o ofício marcando jogo e responde por essa mal traçada linha que
aceita. Nós não é de enjeitar parada. Se a gente tivesse medo de homem, não
saía na rua vestindo calça. A gente vai, pode anunciar. Mas tem um negócio que
é o seguinte. Nós dá o juiz e vocês que é o dono do campo dá a bola. Domingo
tamos aí na Freguesia do Ó pro que der e vier. Respondem logo se aceitam dar a
bola. Se tiver medo de nós, é só dizer que não querem, que a gente não vai”.
(Ass.: Eldócio Pereira (Azulão) – Presidente do União da Barra do Catimbó)
De posse do ofício do União da Barra do
Catimbó, o pessoal da diretoria do Flor do Ó se atucanou e, rápido e rasteiro,
mandaram um pivete levar outro ofício com novas bases:
“Ilmo. Sr.
Diretores do União da Barra do Catimbó
Nós recebeu seu ofício que veio cheio de mumunha. E passamo a responder
nessa mal traçada linha. Vocês quer moleza, já vi tudo. Mas a gente não tá a
fim de criar caso. Só queremo jogar. Vocês pode trazer o juiz. Que com nós ele
não vai ter vida mansa. Se tiver afanando a gente, nosso capitão do time toma o
apito dele e dá pra outro. Nós sabe que na Barra do Catimbó só tem juiz ladrão.
Nós não é otário. Mas aceitamo nessa base que botamo aqui. Agora, no negócio da
bola, vocês traz a bola. Nós dá o campo e vocês a bola. Cada um dá uma coisa.
Se quiser assim, tá combinado”. (Ass.: Olavo Silva – Diretor Esportivo do Flor
do Ó)
Mal o Azulão meteu as botucas no ofício do
adversário, segurou o pivete mensageiro e fez com que ele esperasse às
pamparras pra levar outro ofício de volta:
“Ilmo. Sr.
Diretores do Flor do Ó
Juiz ladrão tem é no bairro de vocês. Tudo abafador. Nós manja a negada
daí. E não adianta vim com grupo pra cima da gente que a gente não é trouxa e
não vai entrar em truque de papagaio enfeitado da Freguesia do Ó. Juiz que a
gente levar pra apitar o jogo apita até o fim e não adianta estrilo de capitão
fajuto. Se nós leva o homem nós garante ele. Nisso vocês pode botar fé. E no
negócio da bola não tem arrego. Vocês dá a bola. Todo mundo sabe que o dono do
campo tem que dar a bola. Agora, se vocês quer arranjar pra não jogar é
probrema de vocês. Nós foi convidado. Aceitamo porque nós não tem medo de
ninguém. Na bola e no pau, nós somo mais nós”. (Ass.: Eldócio Pereira (Azulão)
– Presidente do União da Barra do Catimbó)
Ao tomar conhecimento do novo ofício do
União, a curriola do Flor do Ó se entralhou e, sem demora, mandaram mais um
ofício:
“Ilmo. Sr.
Diretores do União da Barra do Catimbó
Nós vem por meio desta mal traçada linha avisar que não aceita esculacho
de ninguém. Ladrão é vocês aí desse pedaço maldito e fedorento. Nós aqui é
trabalhador. E dentro do campo quem fala mais alto, o único que chia é o
capitão do time e se ele resolver tirar o pilantra que vocês botou pra apitar
pode contar que ele tira porque a gente dá a maior moral pra ele. No negócio da
bola, vocês tem que trazer a de vocês que a da gente tá com bexiga e pode
estorar”. (Ass.: Olavo Silva – Diretor Esportivo do Flor do Ó)
A diretoria do União da Barra do Catimbó,
presidida pelo Azulão, não era de engolir desaforo. Por isso, mal acabaram de
ler o ofício, se bronquearam e azedaram ainda mais na resposta:
“Ilmo. Sr.
Diretores do Flor do Ó
A
Barra do Catimbó não é bairro de ladrão, a mãe de vocês não mora aqui. Gaturama
é a patota daí. E a gente não quer levar a bola nossa porque sabe que vocês vai
querer roubar ela. A negada do Democrata contou pra nós que quando foi jogar aí
a bola deles caiu na vala e vocês enrustiu ela e eles voltou sem bola. Nós não
entra nessa. Deixa de ser fominha e bota a bola que vocês afanou do Democrata
em campo”. (Ass.: Eldócio Pereira (Azulão) – Presidente do União da Barra do
Catimbó)
Esse ofício do Azulão revoltou bastante a
turma do Flor do Ó e eles, naturalmente, enviaram um pra acabar com a graça:
“Ilmo. Sr.
Diretores do União da Barra do Catimbó
Nós não afanou bola de ninguém, nós não ía se sujar por tão pouco. O
Democrata aqui apanhou na bola e no tapa e por isso tá fazendo fuchico. Agora,
vocês fez mal de meter a mãe no meio disso. Quando vocês der a fuça aqui, vão
ter que engolir isso. Porque jogo só vai ter se vocês truxer a bola. Ladrão
pensa que os outros é ladrão. Mas nós não é. Pode trazer a bola sossegado”.
(Ass.: Olavo Silva – Diretor Esportivo do Flor do Ó)
Por fim, o Azulão
mandou o ofício definitivo:
“Ilmo. Sr.
Diretores do Flor do Ó
Nós não vai porque não vai deixar os ladrão daí roubar nossa bola. Mas
quando vocês quiser dar a bola, a gente vai. Quanto esse negócio de engolir o
ofício da mãe de vocês, nós duvida e faz pouco. Estamos aqui pra qualquer
coisa. Se vocês tem medo de vim aqui, pode esperar que nós se encontra nas
quebradas”. (Ass.: Eldócio Pereira (Azulão) – Presidente do União da Barra do
Catimbó)
E por essas e
outras, o União da Barra do Catimbó e o Flor do Ó ficaram sem jogo.
Plínio Marcos
(In: Pasquim,
nº 200, 1973)
terça-feira, 28 de maio de 2013
domingo, 19 de maio de 2013
Mário Cesariny de Vasconcelos EXERCÍCIO ESPIRITUAL
EXERCÍCIO ESPIRITUAL
É preciso dizer rosa em vez de
dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de
dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de
dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez
de dizer um homem
É preciso dizer candelabro em
vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em
vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de
dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de
dizer aurora
[de “Manual de
Prestidigitação” (1956)]
MÁRIO CESARINY
quinta-feira, 25 de abril de 2013
sexta-feira, 19 de abril de 2013
terça-feira, 16 de abril de 2013
Barão de Itararé MONÓLOGO
Rubens: "Sileno embriagado"
MONÓLOGO
Eu tinha doze garrafas de uísque na minha
adega e minha mulher me disse para despejar todas na pia, porque senão...
- Assim seja! Seja feita a vossa vontade –
disse eu, humildemente, e comecei a desempenhar, com religiosa obediência, a minha
ingrata tarefa.
Tirei a rolha da primeira garrafa e
despejei o seu conteúdo na pia, com exceção de um copo que bebi.
Extraí a rolha da segunda garrafa e procedi
da mesma maneira, com exceção de um copo que virei.
Arranquei a rolha da terceira garrafa e
despejei o uísque na pia com exceção de um copo que empinei.
Puxei a pia da quarta rolha e despejei o
copo na garrafa que bebi.
Apanhei a quinta rolha na pia, despejei o
copo no resto e bebi a garrafa, por exceção.
Agarrei o copo da sexta pia, puxei o uísque
e bebi a garrafa, com exceção da rolha.
Tirei a rolha seguinte, despejei a pia
dentro da garrafa, arrolhei o copo e bebi por exceção.
Quando esvaziei todas as garrafas, menos
duas que escondi atrás do banheiro, para lavar a boca amanhã cedo, resolvi
conferir o serviço que tinha feito de acordo com as ordens de minha mulher, a
quem não gosto de contrariar, pelo mau gênio que tem.
Segurei, então, a casa com uma mão e com a
outra contei direitinho as garrafas, rolhas, copos e pias, que eram, ao todo,
exatamente 39. Para me certificar de que não havia engano contei tudo outra vez
e quando terminei já encontrei um total de 93, o que dá certo, quando as coisas
andam de pernas para o ar. Como a casa nesse momento passou mais uma vez pela
minha frente, aproveitei para controlar minhas contas e recontei todas as
casas, copos, rolhas, pias e garrafas, menos aquelas duas que escondi no
banheiro e que eu acho que não vão chegar até amanhã, porque estou com uma sede
louca...
Barão de Itararé
domingo, 14 de abril de 2013
MACHADO DE ASSIS Ideias do canário
IDEIAS DO
CANÁRIO
Um
homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos
um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor
que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.
No princípio do mês passado, — disse ele —
indo por uma rua, sucedeu que um tílburi, à disparada, quase me atirou ao chão.
Escapei saltando para dentro de uma loja de belchior*. Nem o estrépito do
cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que
cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem,
barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que
provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história,
como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza
austera e desenganada das vidas que foram vidas.
A loja era escura, atulhada das coisas
velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em
tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto
que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões,
sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pelo, caixilhos,
binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas,
luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque,
um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão,
duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que
não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta,
encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para
dentro, havia outras coisas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os
objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na
escuridão.
Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da
porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral,
faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a
animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota
de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi
parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar
mais abaixo e acima de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio
daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário,
senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem
sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela
vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras
de azedume.
— Quem seria o dono execrável deste bichinho,
que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão
indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de
graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?
E o canário, quedando-se em cima do poleiro,
trilou isto:
— Quem quer que sejas tu, certamente não estás
em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me
vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo...
— Como — interrompi eu, sem ter tempo de
ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria
ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?
— Não sei que seja sol nem cemitério. Se os
canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é
bonito, mas estou que me confundes.
— Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa,
sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.
— Que dono? Esse homem que aí está é meu
criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se
devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam
criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante
que eles pagassem o que está no mundo.
Pasmado
das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as ideias. A
linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos
engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era
a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a
um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha
saudades do espaço azul e infinito.
—
Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito?
— Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que coisa
é o mundo?
— O mundo, redarguiu o canário com certo ar
de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de
taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que
habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.
Nisto acordou o velho, e veio a mim
arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o
adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara
a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.
— As navalhas estão em muito bom uso,
concluiu ele.
— Quero só o canário.
Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma
gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a
pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o
repuxo e um pouco do céu azul.
Era meu intuito fazer um longo estudo do
fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha
extraordinária descoberta. Comecei por alfabetar a língua do canário, por
estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do
bicho, as suas ideias e reminiscências. Feita essa análise filológica e
psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles,
primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha
conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as
notas, ele esperando, saltando, trilando.
Não tendo mais família que dois criados,
ordenava-lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou
telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações
científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos
entendíamos.
Não é mister dizer que dormia pouco,
acordava duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia-me com febre.
Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais
de uma observação, — ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse
expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas. Três semanas depois da
entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do
mundo.
— O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz
largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco
de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e
circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.
Também
a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham
parecido simples, vi que eram temerárias, Não podia ainda escrever a memória
que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às
universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro
todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não
respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário.
De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e por-lhe água e
comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem
faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do
mundo; o criado não era amador de pássaros.
Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a
espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não
devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no
mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o
canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto
foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz,
tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que
fugira por astuto...
—
Mas não o procuraram?
— Procuramos, sim, senhor; a princípio
trepou ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois
escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos,
aos chacareiros, ninguém sabe nada.
Padeci muito; felizmente, a fadiga estava
passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de
canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para
compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um
amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes.
Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:
— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que
desapareceu?
Era o canário; estava no galho de uma árvore.
Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse
doido; mas que me importavam cuidados de amigos? Falei ao canário com ternura,
pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um
jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular. . .
— Que jardim? Que repuxo?
— O mundo, meu querido.
— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes
de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o
sol por cima.
Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe
desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior.
— De belchior? Trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há
mesmo lojas de belchior?
Machado de Assis
*
A expressão “loja de belchior” é uma antiga gíria do Rio de Janeiro que
significa “brechó, sebo, loja de coisas usadas”.
[Texto
proveniente de:
Biblioteca
Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
Escola
do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido
o uso apenas para fins educacionais.]
? Todas as obras escritas por Machado de Assis podem ser
acessadas e baixadas em: http://www.dominiopublico.gov.br.
sábado, 6 de abril de 2013
Alberto Caeiro - de O GUARDADOR DE REBANHOS (1911-1912) / Poema IX
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos
sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o
sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na
realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
[Fonte: PESSOA, Fernando. Obra poética. 9ª edicão, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, p. 146-147]
[Fonte: PESSOA, Fernando. Obra poética. 9ª edicão, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, p. 146-147]
Yves Tanguy A MULTIPLICAÇÃO DOS ARCOS
Óleo do pintor surrealista francês Yves Tanguy: "A multiplicação dos arcos", de 1954.
[Fonte: surrealismodoacaso.wordpress.com]
quarta-feira, 3 de abril de 2013
beba coca cola DÉCIO PIGNATARI
Poema concreto: "beba coca cola" (1957), do poeta paulista Décio Pignatari (1927-2012), versão com fundo vermelho [Fonte da imagem: www.cprw.com]. Crítica aos signos da comunicação de massas.
quarta-feira, 27 de março de 2013
As estratégias de manipulação
Há vários anos vem circulando na rede um
texto que aborda técnicas políticas de manipulação das massas, praticadas
sobretudo pela mídia. O texto é frequentemente atribuído ao linguista e
ativista norte-americano Noam Chomski, intelectual ativo nas críticas e
denúncias das artimanhas da política conservadora de seu país e do capitalismo
internacional. Entretanto, na verdade, ele foi escrito e publicado pela
primeira vez em francês, no ano de 2002, pelo sociólogo francês Sylvain Timsit,
e expressando uma crítica politicamente vinculada ao pensamento da chamada
“extrema esquerda” francesa. No link http://www.legrandsoir.info/A-propos-des-dix-strategies-de-manipulation-de-masses-attribue-a-Noam-Chomsky.html,
o cientista social francês Jean Bricmont publica um desmentido à autoria do
texto, acompanhado de trechos de entrevista com o próprio Chomski, em que ele
afirma não ser o autor, embora observe que o texto pode ter alguns de seus
escritos como base. Mas há aspectos, como por exemplo no item 10, que se
afastam das ideias de Chomski: enquanto Timsit defende que o sistema usa o
conhecimento científico para controlar as pessoas, Chomski acredita que o
conhecimento realmente científico do ser humano é muito limitado para que possa
ser usado com tal objetivo. Para Bricmont, o texto é uma simplificação do
pensamento de Chomski a respeito do assunto:
“O sucesso aparente desse texto ilustra
bem a má compreensão do pensamento de Chomski a propósito da ‘manipulação’,
tanto entre partidários como entre adversários dele. Lui e Ed Herman,
co-autores de ‘A fabricação do consenso’ (2008), não sugerem em nenhum momento
que existe em algum lugar uma organização oculta que ‘manipula as massas’. Eles
mostram que existe um certo número de filtros, ligados à propriedade privada
das mídias, à necessidade de publicidade, à ação de grupos de influência etc.,
que têm como resultado que a visão de mundo veiculada pelas mídias seja
extremamente enviesada, mas tudo isso funciona um pouco como a ideologia em
Marx, um processo sem sujeito.” (Bricmont)
Para nós, independentemente de se concordar
ou não com todos os itens do texto, e mesmo que ele contenha exageros, Timsit
caracteriza bem a ação que os meios de comunicação exercem sobre o universo
social e cultural. Embora a realidade na França possa ser outra, aqui no
Brasil, a estas alturas, já se pode identificar uma conspiração organizada pelos que detém a propriedade das mídias (são apenas meia dúzia de grupos econômicos que dominam o mercado), junto a grupos da direita política, para exercer o domínio sobre a
sociedade, levando-os a coordenar suas
ações, de modo explícito, no sentido de concretizar várias das estratégias listadas por Timsit. Em
virtude do interesse levantado pela discussão, publicamos aqui o texto
traduzido diretamente do francês, a partir da publicação original no link http://www.syti.net/Manipulations.html,
e restituindo a autoria desse texto a quem é de direito.
Observação:
citado várias vezes por Timsit, o texto “Armas silenciosas para guerras
tranquilas”, datado de 1979, é um documento encontrado por acaso em 1986 em
meio a equipamentos leiloados oriundos do exército norte-americano, e que se
apresenta como um “manual técnico” para promover a manipulação das massas
através de meios de comunicação. Não possui assinatura ou indicações de onde
provém, e não se sabe se foi achado realmente por acaso, por falha de
segurança, ou se foi plantado intencionalmente por algum motivo, ou se é apenas
uma burla. Suspeitas sobre sua autoria o remetem ao Clube Bilderberg, reunião
periódica de grandes empresários e líderes políticos, destinada a fortalecer a
OTAN, e que os mais imaginativos ligam a uma conspiração mundial para dominar o
mundo. Essa informação acentua o viés “conspiracionista” do texto de Timsit,
embora ele mesmo não fale nesses termos em seu texto. Aqui deixamos de lado a
conspiração mundial, na qual não acreditamos (ela não é de fato necessária), e
preferimos levantar a bola para um debate sério a respeito do assunto.
ESTRATÉGIAS
DE MANIPULAÇÃO
As
estratégias e as técnicas dos Donos do Mundo para a manipulação da opinião
pública e da sociedade
1- A estratégia da distração.
Elemento primordial do controle social, a estratégia da distração
consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das
mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, graças a um dilúvio contínuo
de distrações e de informações insignificantes.
A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir o
público de se interessar pelos conhecimentos essenciais na área da ciência, da
economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética.
“Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas
sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado,
ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os
outros animais.” (citação do texto “Armas silenciosas para guerras tranquilas”)
2- Criar problemas, depois oferecer soluções.
Este método também é chamado “problema-reação-solução”. Cria-se um
problema, uma “situação” prevista para causar certa reação no público, a fim de
que ele mesmo reivindique as medidas que se deseja fazer aceitar. Por exemplo:
deixar que se desenvolva ou se intensifique a violência urbana, ou organizar
atentados sangrentos, a fim de que o público exija leis de segurança em
prejuízo da liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para se fazer
aceitar como um mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o
desmantelamento dos serviços públicos.
3- A estratégia da gradação.
Para fazer com que se aceite uma medida inaceitável, é suficiente
aplicá-la progressivamente, “em degradado”, sobre uma duração de 10 anos. É
dessa maneira que condições socioeconômicas radicalmente novas têm sido
impostas durante os anos de 1980 a 1990. Desemprego em massa, precarização,
flexibilização, realocações de trabalhadores, salários que já não garantem uma
renda decente, tantas mudanças que haveriam provocado uma revolução se tivessem
sido aplicadas de forma brusca.
4- A estratégica do adiamento.
Outra maneira de se fazer aceitar uma decisão impopular é a de
apresentá-la como sendo “dolorosa e necessária”, obtendo a aceitação pública no
presente para uma aplicação no futuro. É mais fácil aceitar um sacrifício
futuro do que um sacrifício imediato. Primeiro, porque o esforço não é
empregado imediatamente. Em seguida, porque o público, a massa, tem sempre a
tendência a esperar ingenuamente que “tudo irá melhorar amanhã” e que o
sacrifício exigido poderá ser evitado. Isto dá mais tempo ao público para se
acostumar com a ideia da mudança e de aceitá-la com resignação quando chegue o
momento.
5- Dirigir-se ao público como crianças de baixa idade.
A maioria da publicidade dirigida ao grande público utiliza discurso,
argumentos, personagens e um tom particularmente infantilizante, muitas vezes
próximos à debilidade, como se o espectador fosse um menino de baixa idade ou
um deficiente mental. Quanto mais se intente enganar o espectador, mais se
tende a adotar um tom infantilizante. Por quê?
“Se você se dirige a uma pessoa como se ela tivesse a idade de 12 anos,
então, em razão da sugestão, ela tenderá, com certa probabilidade, uma resposta
ou reação também desprovida de um sentido crítico como a de uma pessoa de 12
anos de idade” (do texto “Armas silenciosas para guerras tranquilas”).
6- Fazer apelo ao emocional muito mais do que à reflexão.
Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um
curto-circuito na análise racional, e por fim ao sentido crítico dos
indivíduos. Além do mais, a utilização do registro emocional permite abrir a
porta de acesso ao inconsciente para aí implantar ideias, desejos, medos e
temores, compulsões, ou induzir comportamentos…
7- Manter o público na ignorância e na mediocridade.
Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os
métodos utilizados para seu controle e sua escravidão.
“A qualidade da educação dada às classes sociais inferiores deve ser a
mais pobre possível, de forma que a distância da ignorância que paira entre as
classes inferiores às classes sociais superiores seja e permaneça incompreensível
para o alcance das classes inferiores” (do texto “Armas silenciosas para
guerras tranquilas”).
8- Encorajar o público a se comprazer na mediocridade.
Encorajar o público a achar “cool” o fato de ser estúpido, vulgar
e inculto…
9- Anular a revolta através da culpabilidade.
Fazer o indivíduo acreditar que ele é o único culpado pela sua própria
infelicidade, por causa da insuficiência de sua inteligência, de suas
capacidades, ou de seus esforços. Assim, ao invés de se rebelar contra o
sistema econômico, o indivíduo se desvaloriza e se culpa, o que gera um estado
depressivo do qual um dos efeitos é a inibição da sua ação. E sem ação, não há
revolução!
10- Conhecer os indivíduos melhor do que eles próprios se conhecem.
No transcorrer dos últimos 50 anos, os progressos fulgurantes da
ciência criaram um fosso crescente entre os conhecimentos do público e aqueles
possuídos e utilizados pelas elites dominantes. Graças à biologia, à
neurobiologia e à psicologia aplicada, o “sistema” chegou a um conhecimento
avançado do ser humano, tanto fisicamente como psicologicamente. O sistema tem
conseguido conhecer melhor o indivíduo comum do que ele conhece a si mesmo. Isso
significa que, na maioria dos casos, o sistema detém um maior controle e um
maior poder sobre os indivíduos do que os indivíduos a si mesmos.
Sylvain Timsit
Para situar a conversa
Esta é a era da comunicação de massas. A
arte e a cultura de nosso tempo resultam de um choque entre formas e práticas
vindas de milênios através de tradições diversas e seu legado criativo, e a sua
apropriação mercenária pela indústria cultural, que busca vampirizá-las,
desmontando-as e remontando-as, simplificadas, em produtos culturais de
confecção barata, prontos para serem consumidos por massas consumistas,
alienadas e conformistas, gerando o tal dinheiro para a indústria cultural e
legando ao esquecimento (não é exagero) tantos artistas autênticos, que
contribuem efetivamente para transmitir aquelas formas práticas da tradição e
trabalhá-las criativamente, atividade cujo valor maior está em outro lugar, num
plano diferente do dinheiro.
Para fazer isso, essa indústria conta com
um grande contingente de paus mandados que se dispõem a simular a experiência
da arte, tomando o cuidado de afastar o que fazem de qualquer reflexão ou
atitude crítica (Janjões modernos), em troca de mais ou menos... dinheiro.
Somado aos paus mandados, que formam o estofo humano da equação, um portentoso
aparato tecnológico, que custa um bom dinheiro, é o veículo material da
indústria cultural. Ele é composto por um imenso conjunto de diferentes
máquinas produzidas industrialmente e interconectadas. Essa estrutura
tecnológica, filha da ciência com o capital, está organizada num sistema
batizado de “mídia” pelos gringos, e se nos apresenta com um valor
embaraçosamente ambíguo: tanto abre espaço para a liberdade de pensamento que
se exercita nesta página da internete como se presta tão frequentemente a
servir de instrumento de dominação, hipnotizando as massas humanas sobre as
quais incide, com o intuito de manipulá-las ao bel prazer.
Neste choque, até meio cósmico para nós, a
parte que fica mais destruída é a das tradições diversas. Demonstrando na
prática as proposições dos filósofos franceses Deleuze e Guatarri, o universo
cultural do capitalismo, encarnado na indústria cultural, se apropria das
formas, dos códigos culturais e dos valores dos sistemas culturais
pré-capitalistas, mais singulares e restritos, e os submete à lógica abstrata
dos valores do capital, que se impõe como sistema geral e hegemônico por onde
quer que grasse o modo capitalista de viver. Os europeus viveram esse processo há tempos,
na condição de criadores da modernidade e um de seus principais centros. A
situação do Brasil, cujo processo de modernização se intensificou a partir de
meados do século XX, portanto muito recentemente, pode ser caracterizada a
partir da proposta desses franceses, num momento – as duas últimas décadas – em
que a continuidade do significado dessas tradições na sociedade parece estar
posto em cheque. Pois não são simplesmente as formas da tradição que estão
cerceadas pelos interesses da indústria cultural capitalista, mas a visão de
mundo da sociedade se transforma em função da hegemonia do capitalismo.
Particularmente, para quem vive no
interior, como nós, contemplamos ao longo dessas duas décadas mudanças
profundas na paisagem do mundo e da vida ao nosso redor. Em alguns aspectos
devido às mudanças contínuas (chamadas de “neoliberalismo”) que convulsionam o
planeta desde os anos 80 e a queda do Muro de Berlim, e em outros devido à
prosperidade do agronegócio selvagem em nossa região, que tomou conta da terra
disponível no campo, expulsando quase toda a sua população para as cidades,
alimentando com esse êxodo os problemas urbanos já existentes e criando outros,
e ocupando a área rural com monocultura de cana, soja ou gado. A paisagem que
rodeou a infância de muitos era outra, e tudo se integrou de tal forma aos
“avanços” do capitalismo que a própria infância já não é a mesma.
Falar de moderno, de modernidade, mais do
que apenas de coisas novas ou atuais, é falar num período histórico, período que
é o da própria formação do país. A modernidade tem seu início no chamado
Renascimento europeu, nos séculos XV e XVI, mas vai se consolidando aos poucos
até a virada do século XVIII para o XIX, quando se instala na Europa Ocidental
e na América do Norte, ao ganhar forma com a Revolução Industrial na
Inglaterra, a revolução política na França, a independência dos Estados Unidos
e logo depois das colônias da América Latina, inclusive a do Brasil, e, na
arte, com o aparecimento da arte romântica. Da Europa e Estados Unidos se
espalha pelo mundo nos 200 anos seguintes, chegando aos rincões mais remotos do
planeta e até ao espaço sideral, a julgar pela nuvem de lixo espacial em órbita
da Terra.
A época moderna é que rompeu com as
sociedades tradicionais e seu modo de ver a vida, criando a sociedade civil, a
separação entre igreja e Estado, o iluminismo, o capitalismo selvagem, o
progresso científico, a arte como expressão da individualidade, o socialismo,
os motores à explosão, a opinião pública, a internete, a bomba atômica, a
liberação dos costumes, os aeroportos, as xacretes e os fascistinhas de
plantão. Ela tem a sua importância na conquista de uma vida mais digna e livre
pelas pessoas, e também na criação dos maiores esquemas de exploração do outro e
de repressão de todos já vistos na história. Essa existência contraditória está
na essência da modernidade, assim como também (por outros motivos) ocorre em
outras épocas históricas. Por isso, não podemos “avaliar” a modernidade como
algo de que “gostamos ou não gostamos”: estamos falando de um mundo inteiro, em
cujo bojo habitamos, e compartilhamos o seu destino com todos.
O Brasil, fazendo parte do entorno
periférico do capitalismo e da modernidade (aos poucos subindo de posto,
right?), foi, desde a sua autonomia em 1822, adotando lentamente os preceitos
modernos, obra da classe rica local, tida como integração do país na
civilização mundial. Segundo boa análise dos marxistas, o Brasil foi entrando
no moderno segundo o esquema da “modernização conservadora”: cada caractere
moderno que entra na sociedade brasileira tem uma contrapartida em compromissos
com valores políticos e ideológicos dos ricos conservadores, que assim terminam
por confrontar a modernização, limitando-a significativamente, neutralizando
efeitos considerados nocivos (como as pessoas desfrutando de seus direitos) da
modernidade, e então essa classe conservadora pode manter sua influência, seu
prestígio e seus valores, cercando-se da aparência de uma modernização
civilizada, que na verdade é dissimulação de um processo que atende a
interesses variados dessa mesma classe social, configurando nossa versão
nacional do capitalismo selvagem.
O advento do moderno no Brasil carrega uma
contradição histórica: a vida moderna abre um espaço para as pessoas terem
direitos, serem mais livres, livrando-se um pouco das limitações impostas pelos
poderes oligárquicos locais e tradicionais. Mas, escaneado e pressionado pelo
esquema da modernização conservadora, o processo de modernização brasileira
reenquadra a sociedade nos imperativos interesses daquelas classes abastadas, e
faz isso de várias formas. Em muitos casos, e cada vez mais na atualidade, a instauração
do moderno ganha um valor ideológico: representa a reafirmação e legitimação
conscientes da cultura burguesa (consumista, individualista e alienante) sobre
as culturas populares, representantes da identidade cultural do país. Trata-se de
uma tentativa de apropriação do universo cultural. Por outro lado, manifestações
culturais críticas, como algumas vanguardas e a boa arte de protesto, ao
tomarem seriamente um moderno sem concessões a estéticas de mercado, desafiam frontalmente
os critérios consagrados de gosto, pagando o preço de permanecerem isoladas num
limbo, acusadas de hermetismo ou de serem expressão de minorias pouco
influentes.
Sabemos que a arte, como atividade humana,
é muito mais antiga do que tudo isso. Praticada desde a pré-história, foi uma
das primeiras coisas que o ser humano fez com a sua linguagem. Se tornou
atividade importante em todas ou quase todas as sociedades humanas. Deriva
dessa antiguidade ancestral a universalidade do “apelo” artístico; do direito e
mesmo do prazer de qualquer pessoa de apreciá-la ou criá-la. Mas, apesar dessa
universalidade e em contradição com ela, a arte é criada e apreciada em
sociedades humanas concretas, dominadas por problemas reais. Desse modo, a arte
produzida nas sociedades modernas e em modernização (conduzidas pelos
interesses hegemônicos do capital) adquiriu gradativamente formas mais
adaptadas aos valores construídos pela modernidade capitalista, processo que
levou à expressão mais acabada dessa modernidade, que é a indústria cultural,
cujo desenvolvimento desembocou paradoxalmente na paralisação da arte e na sua
transformação em mera fachada de efeitos: a obra entendida como “mercadoria
cultural”, deserta de valores estéticos reais.
Não pretendemos negar aqui o “potencial
transformador da indústria cultural”, tão cantado em verso e prosa, defendido
por pensadores importantes como McLuhan, Pierre Lévy, Teixeira Coelho e Umberto
Eco, por movimentos artísticos como o Tropicalismo, que proclamava ter entrado
em todas as estruturas, e pelas lojas de produtos eletrônicos. Reconhecemos que
houve mais de um momento em que foi possível que obras de arte encontrassem
espaço na indústria cultural, particularmente nos estágios mais antigos de seu
desenvolvimento; essa busca de espaço se faz sentir também quando surge a
internete como mídia mais democrática do que os tradicionais rádio, cinema ou
tevê. Não temos a pretensão de sermos apocalípticos em relação à comunicação de
massas, ainda mais num país em que ela tem uma configuração especialmente
envolvente. Nós a estamos usando agora.
Mas a verdade é que vemos claramente, nas
últimas décadas, os vários setores das artes serem sistematicamente ignorados e
boicotados pelas empresas que compõem a “grande mídia” da indústria cultural
nacional: artistas autênticos, que desenvolvem trabalhos sérios de elaboração
estética, atuam em esferas diferentes da esfera da mídia. A ideia, já
sustentada por muitos, de que o artista da sociedade capitalista “se libertou”
de sua antiga tutela à corte do rei, ao sabor do mecenato, porque se
transformou em profissional remunerado pelo mercado, revela-se, no Brasil de
hoje, uma farsa: o escritor não acha editora, o cineasta não consegue
financiamento (a menos que seja vinculado a certa emissora de tevê), o artista
de teatro não tem onde encenar, o artista plástico não tem nem ateliê; mesmo a “captação
de recursos” das leis de incentivo à cultura está no colo da publicidade e da “fama
midiática”. As exceções são poucas e honrosas, mas os verdadeiros artistas
brasileiros são constrangidos ideologicamente, todos os dias, por um conceito
de obra de arte como mercadoria de entretenimento que não foi criado por eles,
mas por pessoas – os empresários e produtores da indústria cultural – que pouco
ou nada têm a ver com a arte, com a cultura e com as pessoas que de fato as
promovem. Fechar os olhos a isso é negar-se a enxergar a realidade que está
diante de quem queira olhar.
Candongas
não fazem festa surgiu para alardear a arte em meio a esse contexto hostil
a ela. Nossa reflexão, surgida na transição do século XX para o XXI, chega no
momento em que três fatores diferentes coincidem de modo muito interessante. Em
primeiro, a crise da arte baseada nos paradigmas estéticos da modernidade, sem
solução até o momento. Em segundo, o questionamento dos aspectos destrutivos e
agressivos da modernidade, desde o movimento ecológico até o Fórum Social
Mundial, o que leva a um inédito questionamento dos próprios valores e
princípios modernos, e a inspirar uma reivindicação dos aspectos positivos da
modernidade, sem a companhia dos aspectos negativos, em busca de um outro mundo
possível. E, enfim, o final da ditadura militar no Brasil e a tentativa da
sociedade brasileira de construir um regime político mais democrático no país,
o que implica inclusive (embora isso não esteja claro para muitos) na
democratização efetiva e regulação legal dos meios de comunicação,
monopolizados por meia dúzia de empresas privadas da burguesia nacional, cuja
preocupação central é apenas monetária e político-ideológica. Essa burguesia
persiste, como forma de legitimar seu poder político e econômico, em uma missão
incansável de acumular dinheiro e de tentar forjar com ele uma história
coletiva (farsesca) nos moldes de seu próprio olhar sobre o mundo, deixando de
fora as visões de mundo e da arte que não ecoem essa olhar, e alienando as massas
até que elas engulam sozinhas esse olhar burguês, tomando-o como seu.
A convergência desses três fatores cria um
contexto que nos parece favorável e propício a um debate amplo sobre a
sociedade e seus valores culturais, debate que nós, em nossa dimensão modesta
frente às grandes empresas que buscam controlar os meios de comunicação para
si, temos a pretensão de levar adiante. Que sociedade estamos construindo para
todos nós? Que cultura temos e precisamos, na época de maior abundância de
informação na história, a partir de nossas concepções de como usar e desfrutar
dessa informação em nosso próprio benefício, para criar uma sociedade mais
justa e sábia? E o que a arte pode nos dizer sobre isso? Pode ela, em suas
manifestações mais criativas e diversas, inundar a realidade, mesmo que
provisoriamente, com uma faísca de intuição? Nosso intuito é contribuir para pensar
e para sentir esse universo cultural e artístico em que nos miramos.
Mas não somos apologistas da arte
engajada. A arte não tem obrigação nenhuma de abordar tematicamente esses
problemas. O artista é livre para dizer o que quiser. Somos contra o
direcionamento prévio do trabalho de criação artística, a não ser o que o
próprio artista resolva se impor. Nos interessa aqui divulgar e falar da mesma
forma sobre obras que busquem se vincular a uma discussão explícita de coisas
da realidade, como sobre obras que estejam absolutamente desinteressadas desse
tipo de discussão. A questão é que, independentemente do tema abordado, a arte,
por sua natureza e papel que tem para o ser humano, já coloca a visão de mundo
do nosso tempo, pois ela mexe com os múltiplos pontos de vista que se cruzam em
nosso olhar individual e coletivo sobre esse mundo. Por isso ela é um terreno
especial para se sentir e pensar a vida em seus diversos aspectos; a
experiência da arte nos convida a rever as concepções que temos do mundo onde
vivemos e de nós mesmos, e nesse rever, a encontrar prazer.
Que a arte possa prosseguir e perdurar em
seu caminho de continuar a tradição e de reelaborá-la criativamente. Que ela
possa driblar as fundações pesadas da indústria cultural, e planando pelas
brechas do sistema ela retome o que lhe é de direito na vida da sociedade. Que
o trabalho do artista nos divirta e também nos faça pensar, nos faça sentir, e
seja uma contribuição efetiva para que tenhamos uma mente mais aberta, um
espírito mais leve e uma inteligência mais atenta. Que o significado mais
profundo da obra de arte fecunde nossa sensibilidade e abra nossos olhos para o
presente e também para o futuro. E que a beleza nos eleve, não no sentido
ilusório de uma depuração moral, mas com a felicidade de estar na existência
por inteiro. Estamos aí, de boca no mundaréu, para ver que massa isso dá.
Candongas não fazem festa
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