sábado, 6 de julho de 2013

Mário Cesariny de Vasconcelos O NAVIO DE ESPELHOS


O NAVIO DE ESPELHOS

(Mário Cesariny)



O navio de espelhos
não navega, cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

(Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele)

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

(O seu porão traz nada
nada leva à partida)

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

(A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto)

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até o fim do mundo




[de “A cidade queimada”, 1965]




domingo, 30 de junho de 2013

Plínio Marcos FUTEBOL É PRA MACHO



Futebol é pra macho


    Certa vez, o União da Barra do Catimbó recebeu o seguinte ofício:

“Ilmo. Sr.
Diretores do União da Barra do Catimbó
  Nós vem por essa mal traçada linha chamar vocês aí pra jogar no campo da gente uma partida de futebol no domingo, que a gente só joga nesse dia, que nos outro a gente trabalha. Se vocês quiser vim, pode responder o ofício dizendo que vem, que é pra gente pendurar ele na tabuleta do boteco do Almeida pros sócio do time da gente poder ver que vocês aceitou e se na hora vocês ficar com medo e não vier eles não ficam pegando no pé da gente e dizendo que essa diretoria não tem ninguém que sabe tratar jogo. Agora, se vocês não tão a fim de encarar a gente, então é problema de vocês. O Flor do Ó não tem medo de ninguém”. (Ass.: Olavo Silva – Diretor Esportivo do Flor do Ó)

    Assim que leu o ofício, o Seu Azulão, presidente do União, se picou de raiva. Convocou a diretoria do seu time, leu o ofício do adversário e de imediato todos toparam o jogo com o Flor do Ó. E como era solicitado pelo desafiante, mandaram a resposta num ofício caprichado:

“Ilmo. Sr.
Diretores do Flor do Ó
  Nós recebeu o ofício marcando jogo e responde por essa mal traçada linha que aceita. Nós não é de enjeitar parada. Se a gente tivesse medo de homem, não saía na rua vestindo calça. A gente vai, pode anunciar. Mas tem um negócio que é o seguinte. Nós dá o juiz e vocês que é o dono do campo dá a bola. Domingo tamos aí na Freguesia do Ó pro que der e vier. Respondem logo se aceitam dar a bola. Se tiver medo de nós, é só dizer que não querem, que a gente não vai”. (Ass.: Eldócio Pereira (Azulão) – Presidente do União da Barra do Catimbó)

    De posse do ofício do União da Barra do Catimbó, o pessoal da diretoria do Flor do Ó se atucanou e, rápido e rasteiro, mandaram um pivete levar outro ofício com novas bases:

“Ilmo. Sr.
Diretores do União da Barra do Catimbó
  Nós recebeu seu ofício que veio cheio de mumunha. E passamo a responder nessa mal traçada linha. Vocês quer moleza, já vi tudo. Mas a gente não tá a fim de criar caso. Só queremo jogar. Vocês pode trazer o juiz. Que com nós ele não vai ter vida mansa. Se tiver afanando a gente, nosso capitão do time toma o apito dele e dá pra outro. Nós sabe que na Barra do Catimbó só tem juiz ladrão. Nós não é otário. Mas aceitamo nessa base que botamo aqui. Agora, no negócio da bola, vocês traz a bola. Nós dá o campo e vocês a bola. Cada um dá uma coisa. Se quiser assim, tá combinado”. (Ass.: Olavo Silva – Diretor Esportivo do Flor do Ó)

    Mal o Azulão meteu as botucas no ofício do adversário, segurou o pivete mensageiro e fez com que ele esperasse às pamparras pra levar outro ofício de volta:

“Ilmo. Sr.
Diretores do Flor do Ó
  Juiz ladrão tem é no bairro de vocês. Tudo abafador. Nós manja a negada daí. E não adianta vim com grupo pra cima da gente que a gente não é trouxa e não vai entrar em truque de papagaio enfeitado da Freguesia do Ó. Juiz que a gente levar pra apitar o jogo apita até o fim e não adianta estrilo de capitão fajuto. Se nós leva o homem nós garante ele. Nisso vocês pode botar fé. E no negócio da bola não tem arrego. Vocês dá a bola. Todo mundo sabe que o dono do campo tem que dar a bola. Agora, se vocês quer arranjar pra não jogar é probrema de vocês. Nós foi convidado. Aceitamo porque nós não tem medo de ninguém. Na bola e no pau, nós somo mais nós”. (Ass.: Eldócio Pereira (Azulão) – Presidente do União da Barra do Catimbó)

    Ao tomar conhecimento do novo ofício do União, a curriola do Flor do Ó se entralhou e, sem demora, mandaram mais um ofício:

“Ilmo. Sr.
Diretores do União da Barra do Catimbó
  Nós vem por meio desta mal traçada linha avisar que não aceita esculacho de ninguém. Ladrão é vocês aí desse pedaço maldito e fedorento. Nós aqui é trabalhador. E dentro do campo quem fala mais alto, o único que chia é o capitão do time e se ele resolver tirar o pilantra que vocês botou pra apitar pode contar que ele tira porque a gente dá a maior moral pra ele. No negócio da bola, vocês tem que trazer a de vocês que a da gente tá com bexiga e pode estorar”. (Ass.: Olavo Silva – Diretor Esportivo do Flor do Ó)

    A diretoria do União da Barra do Catimbó, presidida pelo Azulão, não era de engolir desaforo. Por isso, mal acabaram de ler o ofício, se bronquearam e azedaram ainda mais na resposta:

“Ilmo. Sr.
Diretores do Flor do Ó
  A Barra do Catimbó não é bairro de ladrão, a mãe de vocês não mora aqui. Gaturama é a patota daí. E a gente não quer levar a bola nossa porque sabe que vocês vai querer roubar ela. A negada do Democrata contou pra nós que quando foi jogar aí a bola deles caiu na vala e vocês enrustiu ela e eles voltou sem bola. Nós não entra nessa. Deixa de ser fominha e bota a bola que vocês afanou do Democrata em campo”. (Ass.: Eldócio Pereira (Azulão) – Presidente do União da Barra do Catimbó)

    Esse ofício do Azulão revoltou bastante a turma do Flor do Ó e eles, naturalmente, enviaram um pra acabar com a graça:

“Ilmo. Sr.
Diretores do União da Barra do Catimbó
  Nós não afanou bola de ninguém, nós não ía se sujar por tão pouco. O Democrata aqui apanhou na bola e no tapa e por isso tá fazendo fuchico. Agora, vocês fez mal de meter a mãe no meio disso. Quando vocês der a fuça aqui, vão ter que engolir isso. Porque jogo só vai ter se vocês truxer a bola. Ladrão pensa que os outros é ladrão. Mas nós não é. Pode trazer a bola sossegado”. (Ass.: Olavo Silva – Diretor Esportivo do Flor do Ó)

    Por fim, o Azulão mandou o ofício definitivo:

“Ilmo. Sr.
Diretores do Flor do Ó
  Nós não vai porque não vai deixar os ladrão daí roubar nossa bola. Mas quando vocês quiser dar a bola, a gente vai. Quanto esse negócio de engolir o ofício da mãe de vocês, nós duvida e faz pouco. Estamos aqui pra qualquer coisa. Se vocês tem medo de vim aqui, pode esperar que nós se encontra nas quebradas”. (Ass.: Eldócio Pereira (Azulão) – Presidente do União da Barra do Catimbó)

    E por essas e outras, o União da Barra do Catimbó e o Flor do Ó ficaram sem jogo.


Plínio Marcos

(In: Pasquim, nº 200, 1973)



terça-feira, 28 de maio de 2013

domingo, 19 de maio de 2013

Mário Cesariny de Vasconcelos EXERCÍCIO ESPIRITUAL



EXERCÍCIO ESPIRITUAL

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

[de “Manual de Prestidigitação” (1956)]

MÁRIO CESARINY


terça-feira, 16 de abril de 2013

Barão de Itararé MONÓLOGO

Rubens: "Sileno embriagado"


MONÓLOGO


    Eu tinha doze garrafas de uísque na minha adega e minha mulher me disse para despejar todas na pia, porque senão...
   - Assim seja! Seja feita a vossa vontade – disse eu, humildemente, e comecei a desempenhar, com religiosa obediência, a minha ingrata tarefa.

    Tirei a rolha da primeira garrafa e despejei o seu conteúdo na pia, com exceção de um copo que bebi.
    Extraí a rolha da segunda garrafa e procedi da mesma maneira, com exceção de um copo que virei.
    Arranquei a rolha da terceira garrafa e despejei o uísque na pia com exceção de um copo que empinei.
    Puxei a pia da quarta rolha e despejei o copo na garrafa que bebi.
    Apanhei a quinta rolha na pia, despejei o copo no resto e bebi a garrafa, por exceção.
    Agarrei o copo da sexta pia, puxei o uísque e bebi a garrafa, com exceção da rolha.
   Tirei a rolha seguinte, despejei a pia dentro da garrafa, arrolhei o copo e bebi por exceção.

   Quando esvaziei todas as garrafas, menos duas que escondi atrás do banheiro, para lavar a boca amanhã cedo, resolvi conferir o serviço que tinha feito de acordo com as ordens de minha mulher, a quem não gosto de contrariar, pelo mau gênio que tem.
   Segurei, então, a casa com uma mão e com a outra contei direitinho as garrafas, rolhas, copos e pias, que eram, ao todo, exatamente 39. Para me certificar de que não havia engano contei tudo outra vez e quando terminei já encontrei um total de 93, o que dá certo, quando as coisas andam de pernas para o ar. Como a casa nesse momento passou mais uma vez pela minha frente, aproveitei para controlar minhas contas e recontei todas as casas, copos, rolhas, pias e garrafas, menos aquelas duas que escondi no banheiro e que eu acho que não vão chegar até amanhã, porque estou com uma sede louca...


Barão de Itararé




domingo, 14 de abril de 2013

poema de Denayr Celeste


MACHADO DE ASSIS Ideias do canário






IDEIAS DO CANÁRIO


     Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.
     No princípio do mês passado, — disse ele — indo por uma rua, sucedeu que um tílburi, à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de uma loja de belchior*. Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.
     A loja era escura, atulhada das coisas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pelo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras coisas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão.
     Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume.
     — Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?
     E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:
     — Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo...
     — Como — interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?
     — Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou que me confundes.
     — Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.
     — Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.
     Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as ideias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito.
     — Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito?
     — Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que coisa é o mundo?
     — O mundo, redarguiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.
     Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.
     — As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.
     — Quero só o canário.
     Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.
     Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabetar a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas ideias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando.
     Não tendo mais família que dois criados, ordenava-lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos.
     Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação, — ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas. Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.
     — O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.
     Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias, Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e por-lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.
     Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto...
     — Mas não o procuraram?
     — Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada.
     Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:
     — Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?
     Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doido; mas que me importavam cuidados de amigos? Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular. . .
     — Que jardim? Que repuxo?
     — O mundo, meu querido.
     — Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.
     Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior.
     De belchior? Trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?

Machado de Assis


* A expressão “loja de belchior” é uma antiga gíria do Rio de Janeiro que significa “brechó, sebo, loja de coisas usadas”.

[Texto proveniente de:
Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.]

? Todas as obras escritas por Machado de Assis podem ser acessadas e baixadas em: http://www.dominiopublico.gov.br.

sábado, 6 de abril de 2013

Alberto Caeiro - de O GUARDADOR DE REBANHOS (1911-1912) / Poema IX


Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.


[Fonte: PESSOA, Fernando. Obra poética. 9ª edicão, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, p. 146-147]



Yves Tanguy A MULTIPLICAÇÃO DOS ARCOS


Óleo do pintor surrealista francês Yves Tanguy: "A multiplicação dos arcos", de 1954.
[Fonte: surrealismodoacaso.wordpress.com]

quarta-feira, 3 de abril de 2013

beba coca cola DÉCIO PIGNATARI



Poema concreto: "beba coca cola" (1957), do poeta paulista Décio Pignatari (1927-2012), versão com fundo vermelho [Fonte da imagem: www.cprw.com]. Crítica aos signos da comunicação de massas.

quarta-feira, 27 de março de 2013

As estratégias de manipulação


     Há vários anos vem circulando na rede um texto que aborda técnicas políticas de manipulação das massas, praticadas sobretudo pela mídia. O texto é frequentemente atribuído ao linguista e ativista norte-americano Noam Chomski, intelectual ativo nas críticas e denúncias das artimanhas da política conservadora de seu país e do capitalismo internacional. Entretanto, na verdade, ele foi escrito e publicado pela primeira vez em francês, no ano de 2002, pelo sociólogo francês Sylvain Timsit, e expressando uma crítica politicamente vinculada ao pensamento da chamada “extrema esquerda” francesa. No link http://www.legrandsoir.info/A-propos-des-dix-strategies-de-manipulation-de-masses-attribue-a-Noam-Chomsky.html, o cientista social francês Jean Bricmont publica um desmentido à autoria do texto, acompanhado de trechos de entrevista com o próprio Chomski, em que ele afirma não ser o autor, embora observe que o texto pode ter alguns de seus escritos como base. Mas há aspectos, como por exemplo no item 10, que se afastam das ideias de Chomski: enquanto Timsit defende que o sistema usa o conhecimento científico para controlar as pessoas, Chomski acredita que o conhecimento realmente científico do ser humano é muito limitado para que possa ser usado com tal objetivo. Para Bricmont, o texto é uma simplificação do pensamento de Chomski a respeito do assunto:
     “O sucesso aparente desse texto ilustra bem a má compreensão do pensamento de Chomski a propósito da ‘manipulação’, tanto entre partidários como entre adversários dele. Lui e Ed Herman, co-autores de ‘A fabricação do consenso’ (2008), não sugerem em nenhum momento que existe em algum lugar uma organização oculta que ‘manipula as massas’. Eles mostram que existe um certo número de filtros, ligados à propriedade privada das mídias, à necessidade de publicidade, à ação de grupos de influência etc., que têm como resultado que a visão de mundo veiculada pelas mídias seja extremamente enviesada, mas tudo isso funciona um pouco como a ideologia em Marx, um processo sem sujeito.” (Bricmont) 
     Para nós, independentemente de se concordar ou não com todos os itens do texto, e mesmo que ele contenha exageros, Timsit caracteriza bem a ação que os meios de comunicação exercem sobre o universo social e cultural. Embora a realidade na França possa ser outra, aqui no Brasil, a estas alturas, já se pode identificar uma conspiração organizada pelos que detém a propriedade das mídias (são apenas meia dúzia de grupos econômicos que dominam o mercado), junto a grupos da direita política, para exercer o domínio sobre a sociedade, levando-os a coordenar suas ações, de modo explícito, no sentido de concretizar várias das estratégias listadas por Timsit. Em virtude do interesse levantado pela discussão, publicamos aqui o texto traduzido diretamente do francês, a partir da publicação original no link http://www.syti.net/Manipulations.html, e restituindo a autoria desse texto a quem é de direito.

Observação: citado várias vezes por Timsit, o texto “Armas silenciosas para guerras tranquilas”, datado de 1979, é um documento encontrado por acaso em 1986 em meio a equipamentos leiloados oriundos do exército norte-americano, e que se apresenta como um “manual técnico” para promover a manipulação das massas através de meios de comunicação. Não possui assinatura ou indicações de onde provém, e não se sabe se foi achado realmente por acaso, por falha de segurança, ou se foi plantado intencionalmente por algum motivo, ou se é apenas uma burla. Suspeitas sobre sua autoria o remetem ao Clube Bilderberg, reunião periódica de grandes empresários e líderes políticos, destinada a fortalecer a OTAN, e que os mais imaginativos ligam a uma conspiração mundial para dominar o mundo. Essa informação acentua o viés “conspiracionista” do texto de Timsit, embora ele mesmo não fale nesses termos em seu texto. Aqui deixamos de lado a conspiração mundial, na qual não acreditamos (ela não é de fato necessária), e preferimos levantar a bola para um debate sério a respeito do assunto.



ESTRATÉGIAS DE MANIPULAÇÃO
As estratégias e as técnicas dos Donos do Mundo para a manipulação da opinião pública e da sociedade


1- A estratégia da distração.

Elemento primordial do controle social, a estratégia da distração consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, graças a um dilúvio contínuo de distrações e de informações insignificantes.
A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir o público de se interessar pelos conhecimentos essenciais na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética.
“Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os outros animais.” (citação do texto “Armas silenciosas para guerras tranquilas”)

2- Criar problemas, depois oferecer soluções.

Este método também é chamado “problema-reação-solução”. Cria-se um problema, uma “situação” prevista para causar certa reação no público, a fim de que ele mesmo reivindique as medidas que se deseja fazer aceitar. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou se intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público exija leis de segurança em prejuízo da liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para se fazer aceitar como um mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos.

3- A estratégia da gradação.

Para fazer com que se aceite uma medida inaceitável, é suficiente aplicá-la progressivamente, “em degradado”, sobre uma duração de 10 anos. É dessa maneira que condições socioeconômicas radicalmente novas têm sido impostas durante os anos de 1980 a 1990. Desemprego em massa, precarização, flexibilização, realocações de trabalhadores, salários que já não garantem uma renda decente, tantas mudanças que haveriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de forma brusca.

4- A estratégica do adiamento.

Outra maneira de se fazer aceitar uma decisão impopular é a de apresentá-la como sendo “dolorosa e necessária”, obtendo a aceitação pública no presente para uma aplicação no futuro. É mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrifício imediato. Primeiro, porque o esforço não é empregado imediatamente. Em seguida, porque o público, a massa, tem sempre a tendência a esperar ingenuamente que “tudo irá melhorar amanhã” e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Isto dá mais tempo ao público para se acostumar com a ideia da mudança e de aceitá-la com resignação quando chegue o momento.

5- Dirigir-se ao público como crianças de baixa idade.

A maioria da publicidade dirigida ao grande público utiliza discurso, argumentos, personagens e um tom particularmente infantilizante, muitas vezes próximos à debilidade, como se o espectador fosse um menino de baixa idade ou um deficiente mental. Quanto mais se intente enganar o espectador, mais se tende a adotar um tom infantilizante. Por quê?
“Se você se dirige a uma pessoa como se ela tivesse a idade de 12 anos, então, em razão da sugestão, ela tenderá, com certa probabilidade, uma resposta ou reação também desprovida de um sentido crítico como a de uma pessoa de 12 anos de idade” (do texto “Armas silenciosas para guerras tranquilas”).

6- Fazer apelo ao emocional muito mais do que à reflexão.

Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto-circuito na análise racional, e por fim ao sentido crítico dos indivíduos. Além do mais, a utilização do registro emocional permite abrir a porta de acesso ao inconsciente para aí implantar ideias, desejos, medos e temores, compulsões, ou induzir comportamentos…

7- Manter o público na ignorância e na mediocridade.

Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão.
“A qualidade da educação dada às classes sociais inferiores deve ser a mais pobre possível, de forma que a distância da ignorância que paira entre as classes inferiores às classes sociais superiores seja e permaneça incompreensível para o alcance das classes inferiores” (do texto “Armas silenciosas para guerras tranquilas”).

8- Encorajar o público a se comprazer na mediocridade.

Encorajar o público a achar “cool” o fato de ser estúpido, vulgar e inculto…

9- Anular a revolta através da culpabilidade.

Fazer o indivíduo acreditar que ele é o único culpado pela sua própria infelicidade, por causa da insuficiência de sua inteligência, de suas capacidades, ou de seus esforços. Assim, ao invés de se rebelar contra o sistema econômico, o indivíduo se desvaloriza e se culpa, o que gera um estado depressivo do qual um dos efeitos é a inibição da sua ação. E sem ação, não há revolução!

10- Conhecer os indivíduos melhor do que eles próprios se conhecem.

No transcorrer dos últimos 50 anos, os progressos fulgurantes da ciência criaram um fosso crescente entre os conhecimentos do público e aqueles possuídos e utilizados pelas elites dominantes. Graças à biologia, à neurobiologia e à psicologia aplicada, o “sistema” chegou a um conhecimento avançado do ser humano, tanto fisicamente como psicologicamente. O sistema tem conseguido conhecer melhor o indivíduo comum do que ele conhece a si mesmo. Isso significa que, na maioria dos casos, o sistema detém um maior controle e um maior poder sobre os indivíduos do que os indivíduos a si mesmos.

Sylvain Timsit

Para situar a conversa


     Esta é a era da comunicação de massas. A arte e a cultura de nosso tempo resultam de um choque entre formas e práticas vindas de milênios através de tradições diversas e seu legado criativo, e a sua apropriação mercenária pela indústria cultural, que busca vampirizá-las, desmontando-as e remontando-as, simplificadas, em produtos culturais de confecção barata, prontos para serem consumidos por massas consumistas, alienadas e conformistas, gerando o tal dinheiro para a indústria cultural e legando ao esquecimento (não é exagero) tantos artistas autênticos, que contribuem efetivamente para transmitir aquelas formas práticas da tradição e trabalhá-las criativamente, atividade cujo valor maior está em outro lugar, num plano diferente do dinheiro.
     Para fazer isso, essa indústria conta com um grande contingente de paus mandados que se dispõem a simular a experiência da arte, tomando o cuidado de afastar o que fazem de qualquer reflexão ou atitude crítica (Janjões modernos), em troca de mais ou menos... dinheiro. Somado aos paus mandados, que formam o estofo humano da equação, um portentoso aparato tecnológico, que custa um bom dinheiro, é o veículo material da indústria cultural. Ele é composto por um imenso conjunto de diferentes máquinas produzidas industrialmente e interconectadas. Essa estrutura tecnológica, filha da ciência com o capital, está organizada num sistema batizado de “mídia” pelos gringos, e se nos apresenta com um valor embaraçosamente ambíguo: tanto abre espaço para a liberdade de pensamento que se exercita nesta página da internete como se presta tão frequentemente a servir de instrumento de dominação, hipnotizando as massas humanas sobre as quais incide, com o intuito de manipulá-las ao bel prazer.
     Neste choque, até meio cósmico para nós, a parte que fica mais destruída é a das tradições diversas. Demonstrando na prática as proposições dos filósofos franceses Deleuze e Guatarri, o universo cultural do capitalismo, encarnado na indústria cultural, se apropria das formas, dos códigos culturais e dos valores dos sistemas culturais pré-capitalistas, mais singulares e restritos, e os submete à lógica abstrata dos valores do capital, que se impõe como sistema geral e hegemônico por onde quer que grasse o modo capitalista de viver.  Os europeus viveram esse processo há tempos, na condição de criadores da modernidade e um de seus principais centros. A situação do Brasil, cujo processo de modernização se intensificou a partir de meados do século XX, portanto muito recentemente, pode ser caracterizada a partir da proposta desses franceses, num momento – as duas últimas décadas – em que a continuidade do significado dessas tradições na sociedade parece estar posto em cheque. Pois não são simplesmente as formas da tradição que estão cerceadas pelos interesses da indústria cultural capitalista, mas a visão de mundo da sociedade se transforma em função da hegemonia do capitalismo.
     Particularmente, para quem vive no interior, como nós, contemplamos ao longo dessas duas décadas mudanças profundas na paisagem do mundo e da vida ao nosso redor. Em alguns aspectos devido às mudanças contínuas (chamadas de “neoliberalismo”) que convulsionam o planeta desde os anos 80 e a queda do Muro de Berlim, e em outros devido à prosperidade do agronegócio selvagem em nossa região, que tomou conta da terra disponível no campo, expulsando quase toda a sua população para as cidades, alimentando com esse êxodo os problemas urbanos já existentes e criando outros, e ocupando a área rural com monocultura de cana, soja ou gado. A paisagem que rodeou a infância de muitos era outra, e tudo se integrou de tal forma aos “avanços” do capitalismo que a própria infância já não é a mesma.
     Falar de moderno, de modernidade, mais do que apenas de coisas novas ou atuais, é falar num período histórico, período que é o da própria formação do país. A modernidade tem seu início no chamado Renascimento europeu, nos séculos XV e XVI, mas vai se consolidando aos poucos até a virada do século XVIII para o XIX, quando se instala na Europa Ocidental e na América do Norte, ao ganhar forma com a Revolução Industrial na Inglaterra, a revolução política na França, a independência dos Estados Unidos e logo depois das colônias da América Latina, inclusive a do Brasil, e, na arte, com o aparecimento da arte romântica. Da Europa e Estados Unidos se espalha pelo mundo nos 200 anos seguintes, chegando aos rincões mais remotos do planeta e até ao espaço sideral, a julgar pela nuvem de lixo espacial em órbita da Terra.
     A época moderna é que rompeu com as sociedades tradicionais e seu modo de ver a vida, criando a sociedade civil, a separação entre igreja e Estado, o iluminismo, o capitalismo selvagem, o progresso científico, a arte como expressão da individualidade, o socialismo, os motores à explosão, a opinião pública, a internete, a bomba atômica, a liberação dos costumes, os aeroportos, as xacretes e os fascistinhas de plantão. Ela tem a sua importância na conquista de uma vida mais digna e livre pelas pessoas, e também na criação dos maiores esquemas de exploração do outro e de repressão de todos já vistos na história. Essa existência contraditória está na essência da modernidade, assim como também (por outros motivos) ocorre em outras épocas históricas. Por isso, não podemos “avaliar” a modernidade como algo de que “gostamos ou não gostamos”: estamos falando de um mundo inteiro, em cujo bojo habitamos, e compartilhamos o seu destino com todos.
     O Brasil, fazendo parte do entorno periférico do capitalismo e da modernidade (aos poucos subindo de posto, right?), foi, desde a sua autonomia em 1822, adotando lentamente os preceitos modernos, obra da classe rica local, tida como integração do país na civilização mundial. Segundo boa análise dos marxistas, o Brasil foi entrando no moderno segundo o esquema da “modernização conservadora”: cada caractere moderno que entra na sociedade brasileira tem uma contrapartida em compromissos com valores políticos e ideológicos dos ricos conservadores, que assim terminam por confrontar a modernização, limitando-a significativamente, neutralizando efeitos considerados nocivos (como as pessoas desfrutando de seus direitos) da modernidade, e então essa classe conservadora pode manter sua influência, seu prestígio e seus valores, cercando-se da aparência de uma modernização civilizada, que na verdade é dissimulação de um processo que atende a interesses variados dessa mesma classe social, configurando nossa versão nacional do capitalismo selvagem.
     O advento do moderno no Brasil carrega uma contradição histórica: a vida moderna abre um espaço para as pessoas terem direitos, serem mais livres, livrando-se um pouco das limitações impostas pelos poderes oligárquicos locais e tradicionais. Mas, escaneado e pressionado pelo esquema da modernização conservadora, o processo de modernização brasileira reenquadra a sociedade nos imperativos interesses daquelas classes abastadas, e faz isso de várias formas. Em muitos casos, e cada vez mais na atualidade, a instauração do moderno ganha um valor ideológico: representa a reafirmação e legitimação conscientes da cultura burguesa (consumista, individualista e alienante) sobre as culturas populares, representantes da identidade cultural do país. Trata-se de uma tentativa de apropriação do universo cultural. Por outro lado, manifestações culturais críticas, como algumas vanguardas e a boa arte de protesto, ao tomarem seriamente um moderno sem concessões a estéticas de mercado, desafiam frontalmente os critérios consagrados de gosto, pagando o preço de permanecerem isoladas num limbo, acusadas de hermetismo ou de serem expressão de minorias pouco influentes.
     Sabemos que a arte, como atividade humana, é muito mais antiga do que tudo isso. Praticada desde a pré-história, foi uma das primeiras coisas que o ser humano fez com a sua linguagem. Se tornou atividade importante em todas ou quase todas as sociedades humanas. Deriva dessa antiguidade ancestral a universalidade do “apelo” artístico; do direito e mesmo do prazer de qualquer pessoa de apreciá-la ou criá-la. Mas, apesar dessa universalidade e em contradição com ela, a arte é criada e apreciada em sociedades humanas concretas, dominadas por problemas reais. Desse modo, a arte produzida nas sociedades modernas e em modernização (conduzidas pelos interesses hegemônicos do capital) adquiriu gradativamente formas mais adaptadas aos valores construídos pela modernidade capitalista, processo que levou à expressão mais acabada dessa modernidade, que é a indústria cultural, cujo desenvolvimento desembocou paradoxalmente na paralisação da arte e na sua transformação em mera fachada de efeitos: a obra entendida como “mercadoria cultural”, deserta de valores estéticos reais.
     Não pretendemos negar aqui o “potencial transformador da indústria cultural”, tão cantado em verso e prosa, defendido por pensadores importantes como McLuhan, Pierre Lévy, Teixeira Coelho e Umberto Eco, por movimentos artísticos como o Tropicalismo, que proclamava ter entrado em todas as estruturas, e pelas lojas de produtos eletrônicos. Reconhecemos que houve mais de um momento em que foi possível que obras de arte encontrassem espaço na indústria cultural, particularmente nos estágios mais antigos de seu desenvolvimento; essa busca de espaço se faz sentir também quando surge a internete como mídia mais democrática do que os tradicionais rádio, cinema ou tevê. Não temos a pretensão de sermos apocalípticos em relação à comunicação de massas, ainda mais num país em que ela tem uma configuração especialmente envolvente. Nós a estamos usando agora.
     Mas a verdade é que vemos claramente, nas últimas décadas, os vários setores das artes serem sistematicamente ignorados e boicotados pelas empresas que compõem a “grande mídia” da indústria cultural nacional: artistas autênticos, que desenvolvem trabalhos sérios de elaboração estética, atuam em esferas diferentes da esfera da mídia. A ideia, já sustentada por muitos, de que o artista da sociedade capitalista “se libertou” de sua antiga tutela à corte do rei, ao sabor do mecenato, porque se transformou em profissional remunerado pelo mercado, revela-se, no Brasil de hoje, uma farsa: o escritor não acha editora, o cineasta não consegue financiamento (a menos que seja vinculado a certa emissora de tevê), o artista de teatro não tem onde encenar, o artista plástico não tem nem ateliê; mesmo a “captação de recursos” das leis de incentivo à cultura está no colo da publicidade e da “fama midiática”. As exceções são poucas e honrosas, mas os verdadeiros artistas brasileiros são constrangidos ideologicamente, todos os dias, por um conceito de obra de arte como mercadoria de entretenimento que não foi criado por eles, mas por pessoas – os empresários e produtores da indústria cultural – que pouco ou nada têm a ver com a arte, com a cultura e com as pessoas que de fato as promovem. Fechar os olhos a isso é negar-se a enxergar a realidade que está diante de quem queira olhar.
     Candongas não fazem festa surgiu para alardear a arte em meio a esse contexto hostil a ela. Nossa reflexão, surgida na transição do século XX para o XXI, chega no momento em que três fatores diferentes coincidem de modo muito interessante. Em primeiro, a crise da arte baseada nos paradigmas estéticos da modernidade, sem solução até o momento. Em segundo, o questionamento dos aspectos destrutivos e agressivos da modernidade, desde o movimento ecológico até o Fórum Social Mundial, o que leva a um inédito questionamento dos próprios valores e princípios modernos, e a inspirar uma reivindicação dos aspectos positivos da modernidade, sem a companhia dos aspectos negativos, em busca de um outro mundo possível. E, enfim, o final da ditadura militar no Brasil e a tentativa da sociedade brasileira de construir um regime político mais democrático no país, o que implica inclusive (embora isso não esteja claro para muitos) na democratização efetiva e regulação legal dos meios de comunicação, monopolizados por meia dúzia de empresas privadas da burguesia nacional, cuja preocupação central é apenas monetária e político-ideológica. Essa burguesia persiste, como forma de legitimar seu poder político e econômico, em uma missão incansável de acumular dinheiro e de tentar forjar com ele uma história coletiva (farsesca) nos moldes de seu próprio olhar sobre o mundo, deixando de fora as visões de mundo e da arte que não ecoem essa olhar, e alienando as massas até que elas engulam sozinhas esse olhar burguês, tomando-o como seu.
     A convergência desses três fatores cria um contexto que nos parece favorável e propício a um debate amplo sobre a sociedade e seus valores culturais, debate que nós, em nossa dimensão modesta frente às grandes empresas que buscam controlar os meios de comunicação para si, temos a pretensão de levar adiante. Que sociedade estamos construindo para todos nós? Que cultura temos e precisamos, na época de maior abundância de informação na história, a partir de nossas concepções de como usar e desfrutar dessa informação em nosso próprio benefício, para criar uma sociedade mais justa e sábia? E o que a arte pode nos dizer sobre isso? Pode ela, em suas manifestações mais criativas e diversas, inundar a realidade, mesmo que provisoriamente, com uma faísca de intuição? Nosso intuito é contribuir para pensar e para sentir esse universo cultural e artístico em que nos miramos.
     Mas não somos apologistas da arte engajada. A arte não tem obrigação nenhuma de abordar tematicamente esses problemas. O artista é livre para dizer o que quiser. Somos contra o direcionamento prévio do trabalho de criação artística, a não ser o que o próprio artista resolva se impor. Nos interessa aqui divulgar e falar da mesma forma sobre obras que busquem se vincular a uma discussão explícita de coisas da realidade, como sobre obras que estejam absolutamente desinteressadas desse tipo de discussão. A questão é que, independentemente do tema abordado, a arte, por sua natureza e papel que tem para o ser humano, já coloca a visão de mundo do nosso tempo, pois ela mexe com os múltiplos pontos de vista que se cruzam em nosso olhar individual e coletivo sobre esse mundo. Por isso ela é um terreno especial para se sentir e pensar a vida em seus diversos aspectos; a experiência da arte nos convida a rever as concepções que temos do mundo onde vivemos e de nós mesmos, e nesse rever, a encontrar prazer.
     Que a arte possa prosseguir e perdurar em seu caminho de continuar a tradição e de reelaborá-la criativamente. Que ela possa driblar as fundações pesadas da indústria cultural, e planando pelas brechas do sistema ela retome o que lhe é de direito na vida da sociedade. Que o trabalho do artista nos divirta e também nos faça pensar, nos faça sentir, e seja uma contribuição efetiva para que tenhamos uma mente mais aberta, um espírito mais leve e uma inteligência mais atenta. Que o significado mais profundo da obra de arte fecunde nossa sensibilidade e abra nossos olhos para o presente e também para o futuro. E que a beleza nos eleve, não no sentido ilusório de uma depuração moral, mas com a felicidade de estar na existência por inteiro. Estamos aí, de boca no mundaréu, para ver que massa isso dá.

Candongas não fazem festa