domingo, 28 de dezembro de 2014

Machado de Assis A IGREJA DO DIABO



A IGREJA DO DIABO

CAPÍTULO I

DE UMA IDEIA MIRÍFICA

     Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo; nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
     – Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.
     Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a ideia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: – Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.


CAPÍTULO II

ENTRE DEUS E O DIABO

     Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.
     – Que me queres tu? perguntou este.
     – Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.
     – Explica-te.
     – Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...
     – Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.
     – Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isso, com lealdade, para que não me acuseis de dissimulação... boa ideia, não vos parece?
     – Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.
     – Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.
     – Vai.
     – Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
     – Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?
     O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma ideia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
     – Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...
     – Velho retórico! Murmurou o Senhor.
     – Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, – a indiferença, ao menos, – com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, – ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...
     Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um ar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.
     – Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
     – Já vos disse que não.
     – Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?
     – Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
     – Negas esta morte?
     – Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
     – Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja, chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! Vai!
     Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

CAPÍTULO 3

A BOA NOVA AOS HOMENS

     Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
     – Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
     Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.
     Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: “Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu”... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que o fez realmente imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.
     As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloquência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
     Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? Não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? E o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal e pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.
     E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
     Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: “Leve a breca o próximo! Não há próximo!” A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: – Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.

CAPÍTULO 4

FRANJAS E FRANJAS

     A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.
     Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.
     A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas, socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogman; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinquenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.
     Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:
     – Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.



MACHADO DE ASSIS



quarta-feira, 28 de maio de 2014

Machado de Assis A MORTE DE OFÉLIA (paráfrase de Hamlet) in Falenas (1870)


A MORTE DE OFÉLIA
(Paráfrase)

Junto ao plácido rio
Que entre margens de relva e fina areia
Murmura e serpenteia,
O tronco se levanta,
O tronco melancólico e sombrio
De um salgueiro. Uma fresca e branda aragem
Ali suspira e canta,
Abraçando-se à trêmula folhagem
Que se espelha na onda voluptuosa.
Ali a desditosa,
A triste Ofélia foi sentar-se um dia
Enchiam-lhe o regaço umas capelas
Por suas mãos tecidas
De várias flores belas,
Pálidas margaridas,
E rainúnculos, e essas outras flores
A que dá feio nome o povo rude,
E a casta juventude
Chama — dedos da morte. — O olhar celeste
Alevantando aos ramos do salgueiro
Quis ali pendurar a ofrenda agreste.
Num galho traiçoeiro
Firmara os lindos pés, e já seu braço,
Os ramos alcançando,
Ia depor a ofrenda peregrina
De suas flores, quando
Rompendo o apoio escasso,
A pálida menina
Nas águas resvalou; foram com ela
Os seus — dedos da morte — e as margaridas.
As vestes estendidas
Algum tempo a tiveram sobre as águas,
Como sereia bela
Que abraça ternamente a onda amiga.
Então, abrindo a voz harmoniosa,
Não por chorar as suas fundas mágoas,
Mas por soltar a nota deliciosa
De uma canção antiga,
A pobre naufragada
De alegres sons enchia os ares tristes,
Como se ali não visse a sepultura
Ou fosse ali criada.
Mas de súbito as roupas embebidas
Da linfa calma e pura
Levam-lhe o corpo ao fundo da corrente,
Cortando-lhe no lábio a voz e o canto.
As águas homicidas,
Como a laje de um túmulo recente,
Fecharam-se; e sobre elas,
Triste emblema de dor e de saudade,
Foram nadando as últimas capelas.


MACHADO DE ASSIS


sábado, 3 de maio de 2014

MÁRIO DE ANDRADE Eu sou trezentos


EU SOU TREZENTOS


Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ó espelhos! Ó Pirineus! Ó caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.



Mário de Andrade



domingo, 23 de março de 2014

O HINO DO FUTURO É PARADISÍACO Roberto Piva


O HINO DO FUTURO É PARADISÍACO


Este poema é dedicado aos presos políticos do Brasil-
Contra a tortura, pelas liberdades democráticas

                                                                                           “un cor feroce.
                                                                                            una virtute armata...”
                                                                                                          Machiavelli



I

Todas estas embalagens mortas
todas estas estatísticas tolas
todos estes desabamentos dos miolos da Terra
todas estas moscas vaporizadas nos olhos dos dementes
todas estas hérnias jogadas no lixo
todas as autópsias surrupiadas no escuro
todas as mãos decepadas eletrocutadas esmagadas
todas as bocas urrando sob o mesmo focinho incerto
toda a voracidade da TV & suas sucuris metálicas da desolação
todos estes brinquedos tristes carregados de bala de goma
todos os enforcados de cabeça para baixo
toda esta merda de marchas cívicas
todo o soluço do país soluço mais fundo que o coração rubro da aurora
todas as academias & seus poetas empalhados
todas as pupilas do crime
todos os gorilas da guerra-fria & sua pop music
todos os garotos de 15 anos com cérebros de catarro esperando a sepultura
todos os hippies de butique brincando de profetas enquanto costuram os olhos do estudante
há uma porta trancada na cara do país
há um anúncio classificado que escapou da Idade Média
há uma paisagem dilacerada escamoteada em símbolos mais castrados que um cantor de rock


II

Neste momento uma ave desova o poente no calor de novembro entre duas rochas onde a primeira é toda de cactus selvagens relutando como um segredo relutando como o degredo da tua mais simples ilusão os ovos rolam nas trevas onde rondam tigres para passar o tempo o tempo o tempo o tempo


III

Crianças deste mundo
Mares deste mundo
Flores deste mundo
homens, mulheres corações da noite
no fundo do olho do furacão
na ponta da faca do espaço
na franja vermelha das cidades
tua febre é o último adeus à resignação à moléstia cardíaca do tédio
tua febre é a saída apertada entre dois goles de vida


IV

para aqueles que vomitaram sangue
para aqueles que ofertaram o último suspiro
para aqueles que o raio X é o espectro de um  crocodilo acendendo um cigarro
para aqueles sozinhos
para aqueles que se calam diante dos regulamentos
para aqueles cujas almas se transformaram em geléias de pura transcendência
para aqueles que não têm a Bahia como válvula de escape curtição do grande embalo refrigerado tudo bem bicho legal tamos aí
para aqueles para os quais tudo é ilegal & que vivem como bichos contra a vontade & fedem nas prisões estando aí à disposição da bússola dolicocéfala da repressão
para aqueles que são procurados infernizados enquanto tudo bem tudo bem canta a televisão na sua primavera animal
para aqueles cujos estômagos viraram papa & seus cérebros cartuchos de dinamite
para aqueles que não têm mais filhos
para aqueles que perderam seus amores no último trem blindado do Esquadrão da Morte
para aqueles que acordam sempre no mesmo lugar na mesma manhã no mesmo arco-íris quebrado.




ROBERTO PIVA



quinta-feira, 13 de março de 2014

Albrecht DÜRER Os cavaleiros do Apocalipse (1498)


Sobre esta xilogravura de Dürer, do auge da Renascença, Michel Foucault comenta, na sua História da Loucura: "(...) em Dürer, os cavaleiros do Apocalipse, exatamente aqueles que foram enviados por Deus: não são os anjos do Triunfo e da reconciliação, não são os arautos da justiça serena, mas sim os guerreiros desenfreados da louca vingança. O mundo mergulha no Furor universal. A vitória não cabe a Deus, nem ao Diabo, mas à Loucura." (FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 1987, p.22)



sábado, 1 de março de 2014

GREGÓRIO DE MATOS Descreve a confusão do festejo do Entrudo


SONÊTO

Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas,
Galinhas, porco, vaca, e mais carneiro,
Os perus em poder do Pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas.

Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas,
Gastar para comer muito dinheiro,
Não ter mãos a medir o Taverneiro,
Com réstias de cebolas dar pancadas.

Das janelas com tanhos dar nas gentes,
A buzina tanger, quebrar panelas,
Querer em um só dia comer tudo.

Não perdoar arroz, nem cuscuz quente,
Despejar pratos, e alimpar tigelas,
Estas as festas são do Santo Entrudo.


Gregório de Matos


Observações sobre o vocabulário do poema:

Filhó: biscoito ou bolinho feito de farinha e ovos, frito, e, em seguida, passado em mistura de açúcar e canela ou molhado em calda aromatizada de mel.
Fatia: rabanada.
Sonho: doce feito com massa cozida de farinha de trigo, ovos, leite, frito em gordura e geralmente polvilhado com açúcar e canela.
Mal-assada: Fritada (espécie de omelete).
Pulha: brincadeira maliciosa e de mau gosto que consiste em ato de zoar uma pessoa, levando-a a fazer perguntas cuja resposta reverte em escárnio dela mesma (tipo “Quem é? É o Mário. Que Mário? Aquele que te pegou atrás do armário.” e por aí afora). “Deitar pulhas” aparece com o sentido de fazer, aplicar pulhas.
Tanho: assento de tábua.

Entrudo: festejos realizados no Brasil colonial e imperial, que se transformaram no atual carnaval. O Entrudo de que nos fala Gregório de Matos ocorreu em Salvador (ou “Cidade da Bahia”, como se dizia na época), por volta de 1690.


Machado de Assis CÍRCULO VICIOSO


Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
– “Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
                      
– “Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

– “Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

– “Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?”




Machado de Assis (em Ocidentais, 1901)